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ERA DIA DE FINADOS. Todo mundo sabe que não se deve trabalhar nesse dia. Isso enfurece os espíritos. É o dia de prestar homenagens aos mortos. Ela nunca ligou para nada disso. Ainda lembro-me da cabeça loira passando pela porta, tanto tempo atrás. Ele a trouxe, ainda menina, vacilante e assustada nesse mundo novo. Falava pouco, lia muito. Aqui de cima, eu conseguia enxergar todas aquelas palavras que a encantavam tanto. Era uma moça valorosa, cuidava da casa, entrava e saía sempre muito apressada. Mulher pequena e esperta, não temia nada e não se dobrava a ninguém. Tinha vindo de longe e nunca quis se misturar. Eu via sua cabeça sacudindo quando ele tentava convencê-la a ser mais parecida com as esposas daqui. Ele perdia os cabelos e ganhava peso. A cabeça loura foi dando lugar a um tom mais prateado, mas a força dela nunca esmaeceu. Nem quando ele caiu um dia e nunca mais voltou a passar por aquela porta. Pelo contrário, viúva, trabalhava com ainda mais energia e eventualmente até cantava durante as tarefas.

Por entre os caibros que me suportam, eu a vi prosperar. A casa foi ficando mais bonita. Do lado de fora, pude assistir os rebanhos crescerem, máquinas novas, o pomar mais frondoso, muitos empregados. A fazenda foi se tornando viçosa e ela, cada vez mais destemida. Cansei de ver homens poderosos, pedindo-lhe favores e conselhos, que ela dava sem pestanejar, impaciente, autoritária e apressada. Alguns pretendentes se aproximaram, mas foram escorraçados sem nenhuma simpatia. Ela gostava de viver só e de ser quem era.

A gente daqui sempre respeitou as tradições. De oferendas às aparições, rezas nos dias certos, jejum em momentos esperados, novenas e procissões, resguardo de trabalho quando ele é exigido. Ensinavam às crianças e passavam o costume de geração em geração. Ela, não. Revirava os olhos e ria condescendente quando Joana, a vizinha e única amiga, já nos seus anos de declínio, a alertava para as tradições.

—  Quando tiver tempo, eu faço, prometo. Por enquanto, você faz por nós duas. — respondia à amiga brava pela teimosia.

A noite passou ligeira, as onze badaladas reverberaram no relógio de pêndulo, encostado na parede da sala. Era herança da mãe do falecido. Algumas vezes, eu via postada de frente a peça e tive a impressão que fazia careta para ele. Talvez dirigisse a ele todo o desgosto direcionado à família do marido. Papéis espalhados deixavam claro que ela estava ali desde cedo, organizando contas, planilhas, mapas da propriedade, contrato de compra da fazenda de um vizinho. Ninguém além dela na casa, silêncio quebrado apenas pelos mugidos das vacas e mudanças nos ponteiros do relógio, o vento e a tempestade lá fora. A escuridão, amenizada apenas pela luz fraca de uma lanterna, tomava conta de tudo. A chuva levou a eletricidade embora, e a companhia só viria no dia seguinte. Ninguém faria nada naquele dia. Ela continuava fazendo as anotações, conferindo números, fazendo contas. Não me lembro de tê-la visto almoçar. As batidas fortes estremeceram até a última das minhas telhas. Ela ficou quieta, talvez esperando a visita inconveniente ir embora. Uma segunda batida e a voz conhecida lá de fora.

— Rosa, trouxe seu jantar! — a voz da amiga a obrigou a se levantar. — Não precisa abrir. Deixei o pernil lá em cima do fogão. Já vou embora.

Rosa agradeceu sentando de volta na cadeira. Prosseguiu trabalhando. Esticou-se na cadeira e percebeu que estava com fome. Pensou em ir até a cozinha comer o que a vizinha trouxe. Eram amigas há tempos, a outra estava doente e ela sentiu uma certa culpa por receber o jantar ao invés de ir até lá, levar uma refeição para Joana, a amiga de tanto tempo que vivia sozinha desde a viuvez. Prometeu a si mesma ser mais dedicada no futuro. Afinal, eram as vizinhas mais próximas e ambas eram sós. Deveria ser mais cuidadosa e prestar mais atenção à amiga.

As doze badaladas bateram enquanto chegava à porta da cozinha. Viu a forma enorme e repreendeu Joana mentalmente. Para que aquele exagero para uma pessoa só? Mais dois passos e descobriu o volume sobre a cauda do fogão de lenha. Piscou repetidas vezes tentando assimilar o choque. Não era o pernil. Era uma perna humana, feminina e roxa, onde larvas de varejeira passeavam tranquilamente. O cheiro contundente atingiu o nariz no mesmo momento em que a porta da cozinha se abriu com um rangido agourento. O corpo gordo e careca do marido, já mutilado pela decomposição, seguido de outros cadáveres de homens, mulheres e crianças invadiam sua cozinha em passos trôpegos, enchendo o ambiente com gemidos, cheiro de carne podre e pedaços humanos que insistiam em se desgrudar de seus donos. A última coisa que Rosa conseguiu ver, foi a horda se aproximando e ferindo suas vivas carnes com dentes e unhas.

Na manhã seguinte, o capataz encontrou uma grande poça de sangue e vísceras, além da perna podre numa travessa e marcas de terra por toda a cozinha

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Na manhã seguinte, o capataz encontrou uma grande poça de sangue e vísceras, além da perna podre numa travessa e marcas de terra por toda a cozinha. Na casa de Joana, seu cadáver foi encontrado, morta por um infarto, com uma perna faltando. Ela havia falecido na manhã anterior e só foi encontrada depois do feriado.

Ninguém mais teve notícias de Rosa, nenhum corpo foi encontrado e não havia herdeiros. A fazenda foi dividida pelos funcionários e, como ninguém mais queria morar na casa, a última coisa de que me lembro foi quando me removeram para demolir tudo e construir um grande celeiro no lugar do que já foi o grande orgulho daquela mulher tão desafiadora. Algumas de minhas telhas foram aproveitadas para ele, o que me permitiu saber que nunca mais, ninguém naquela região, ousou trabalhar no dia dos mortos.

 Algumas de minhas telhas foram aproveitadas para ele, o que me permitiu saber que nunca mais, ninguém naquela região, ousou trabalhar no dia dos mortos

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@ZildaMariano nasceu em 1981 e cresceu no interior de Goias. Atualmente ela mora com o marido e os filhos na cidade de Brasília e acredita que contar histórias é sua maneira de fazer parte do mundo. Em 2017 ela publicará  "Mais Que Perfeito", seu primeiro livro físico.



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