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NÃO FAZIA tanto frio na mesa do escritório quanto entre as árvores da floresta. Apesar de que ainda podia se sentir uma leve brisa gelada pela pequena sala na Delegacia de Pasaredo. Lucy detestava aquecedores, nunca os ligava em sua potência máxima. Ainda estávamos conectados, então pude sentir toda a frustração que invadia o corpo dela e, consequentemente, me acometia. Não tentei protegê-la. Ela precisava sentir aquilo para que sua mente funcionasse melhor, eu conhecia a minha senhora.

Levantou-se e pegou-me da mesa, prendendo-me a seu cinto e voltando ao quadro de evidências. Um suspiro e mais uma onda de frustração. Aquele mural nada mais era do que uma organização competente que demonstrava toda a nossa incompetência. As fotos dos meninos e meninas mortos doíam um pouco mais na mente e no coração a cada vez que eram observadas. Além de todas as vítimas serem crianças, não tinha mais nada. Os infelizes que faziam aquilo sabiam muito bem onde estavam pisando. Nem mesmo um fio de cabelo ou um rastro qualquer deixado pelo local. Eu percebo que uma dor acomete à Lucy. Enxaqueca. Insisto para que ela tome o analgésico.

— Eu não preciso de proteção — murmura, caminhando em direção à sua bolsa e tirando o comprimido de lá. Engoliu a seco e voltou ao quadro de crimes. Cruzando os braços. Ela pensava, pensava e pensava. Eu limpava sua mente dos pensamentos atrapalhados, concedendo-lhe clareza em meio à escuridão. Infelizmente, nem sempre a luz traz à vista o que precisa ser enxergado. Ver Lucy assim me dizimava. Se meu trabalho era protegê-la e guia-la, me ver impossibilitado de executar tal tarefa fazia-me sentir inexistente. Apenas mais um inanimado reduzido a um valor de apresentações. Lucy iniciou mais uma de suas conversas consigo mesma.

— Ainda tem aquela coisa... O que seria aquilo, meu Deus? No que Val estava metido? Próximo ao local do crime, transformado em algo irreal, a garganta dilacerada como a das vítimas... O que é tudo isso? O que é? O que é?! — bradou a última frase, dando as costas para o quadro e socando à sua mesa. Sentiu a dor em sua mão e suportou-a sem reclamar. Eu tentei acalmá-la novamente.

Duas batidas à porta a fazem suspirar e ela se vira para ver quem é. Rafael estava de pé esperando que a parceira acenasse permitindo à sua entrada. Lucy fez um aceno com a mão para que o amigo entrasse e voltou à sua cadeira, tirando-me de seu cinto e me colocando de volta à mesa. Rafael estampa um estranho sorriso no rosto.

— Eu acho que você vai querer ficar de pé para isso — comentou, ajustando o quadro de evidências de forma a ficar de frente para a mesa de Lucy. — Me passa a caneta!

— Não me diga que descobriu algo — uma onda de ansiedade invadira seu corpo.

Lucy me pega novamente da mesa e agora me prende em seu uniforme. Apesar de se irritar com meu modo invasivo às vezes, sempre gostava de me manter por perto, pois sabia que eu a tornava melhor em seu trabalho. Ela lança a caneta para Rafael que a segura com precisão. Depois, anda até à frente da mesa e se recosta à mesma. Rafael destampa a caneta e começa seu discurso.

— Eu fiquei horas olhando para esse mesmo mapa à minha frente, lá na minha sala — falou ele. — Nada fazia sentido até que eu pensei: E se as vítimas não forem o foco principal da investigação? E se elas são a parte menos importante? E se a parte mais importante, se a chave de tudo, fossem os locais de seus assassinatos? Eles saltaram aos meus olhos, todas as marcações. E observe bem... — Rafael sorri, marcando o primeiro x no mapa do quadro. — Irene Rios, a primeira criança, morta às margens do Rio Gitano. Iago Ully, a segunda vítima, morto na Mesquita de São Gideão. Então conecte os dois pontos. — Uma linha horizontal é traçada por Rafael. Lucy se levanta e caminha para o lado do parceiro, instigada pela ideia do amigo e maravilhada por todo o seu brilhantismo. — João Carlos Oliveira, o terceiro, assassinado à porta da Biblioteca de Pasaredo. — Uma linha diagonal. — Os gêmeos Júnior e Gabriel, assassinados no playground. — Mais uma linha diagonal. — Sara Tavares e Bianca Neves, assassinadas no Parque Andrômeda. — Outra linha diagonal. — E então retornamos ao ponto inicial: o Rio Gitano. Giulia Souza, Lúcio Fernandes e Gabrielle Almeida, assassinados hoje à noite.

As Vozes Que Não Ouvimos (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora