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OS OLHOS são armações incríveis, não? A compreensão de tudo aquilo que nos rodeia. A distinção de formas, cores, atributos. Os olhos são armações incríveis. Mas como tudo criado no mundo pelo Altíssimo ou pela Explosão, eles eram uma benção e uma maldição. O que foi visto, nunca poderia ser desvisto. A memória faz questão de nos lembrar. E como tudo criado no mundo pelo Altíssimo ou pela Explosão, ela pode ser uma benção e uma maldição. E quando se trata do que é visto, as lembranças salvas serão sempre as mais horripilantes.

Eu encarava algo extremamente incomum. Não apenas incomum, era irreal. Mesmo para os padrões dessa cidadela. Coisas estranhas aconteciam em Pasaredo a todo o tempo. O esquisito era evento corriqueiro por aqui. Entretanto, nunca havia me deparado com nada como aquilo que contemplava naquele momento. Eu podia ouvir as batidas por sob a blusa de Lucy. Seu coração pulsante em minhas costas. E eu podia sentir o quão nervosa ela estava, petrificada. Transmiti a ela que deveríamos sair dali o mais rápido possível. Estávamos lidando com algo grandioso, desconhecido e assustador. Seu revólver trinta e oito nunca seria páreo para aquilo.

Levou alguns instantes, mas ela se deu por vencida. A coragem era uma virtude inigualável, a obstinação do virtuoso que poderia ser o revés para toda a sua qualidade. Lucy era a mulher mais irredutível que eu conheci. Seu descanso só vinha quando se findava o seu caso. No instante em que Lucy acatara minha sugestão, eu pude sentir exatamente o que ela sentira. Seus olhos se arregalaram e seu corpo congelou por completo. Sua visão ficou turva. E com a mesma facilidade em que um furacão arrasta cidades, nós fomos levados para bem longe dali.

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            — Com esses chegamos a um total de dez — declarou Lucy, agachada perto do rio Gitano, que cortava o povoado de Pasaredo

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— Com esses chegamos a um total de dez — declarou Lucy, agachada perto do rio Gitano, que cortava o povoado de Pasaredo. Eu estava preso a sua blusa, como de praxe, mas Lucy desconectara o seu coração de mim. Provavelmente não desejava que eu tentasse acalentá-lo. Ela era o tipo de pessoa que gostava de sentir raiva, dor, tristeza, angústia. Dizia que passar por tudo isso era o que constituía o trabalho dela e que precisava de cada um desses sentimentos para renovar as forças e se preparar para todas as outras situações que lhe eram esperadas nas manhãs seguintes. — Dez crianças assassinadas a sangue-frio. Nenhuma pista de quem ou o quê está fazendo isso.

— Como assim "o que"? — perguntou-a Rafael, o seu parceiro. Ele era um homem alto e de corpo atlético. Os cabelos cortados em um topete despojado e o uniforme de policial davam-lhe o toque especial que fazia muitas das mulheres suspirarem por ele e algumas delas o terem de fato.

— Gargantas dilaceradas não se parecem com algo que humanos fariam — declarou, levantando-se e suspirando. As mãos na cintura. — Ou, pelo menos eu espero que não.

— As feridas podem ter sido feitas por garras, assim como por instrumentos cortantes, Lucy — responde-a. — Eu sei que você quer mais do que tudo acreditar na luz que existe nos seres humanos. Só não esqueça que as suas trevas podem brilhar na mesma intensidade.

As Vozes Que Não Ouvimos (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora