Quando eu estava abaixada atrás do sofá com minha arminha cheia de água e Falcão com a mão na minha boca me impedindo de rir, nem pensei em todos os problemas que tinha. Drummond estava na porta da cozinha, esperando o irmão bater na porta. Na minha cabeça, nem lembrava de Letícia que havia conseguido um emprego fixo e agora tinha menos tempo ainda pra mim, não lembrava da prova importante de amanhã, nem dos currículos que eu havia que entregar por aí. Existia apenas eu, pássaro-negro, Vitória, leoa mansa e Du, major.
-- Câmbio, Major para pássaro negro, tudo pronto aí, pássaro negro? -- disse sua voz baixa no rádio comunicador, walkie talkie, ele estava muito empenhado.
-- Câmbio. -- Sussurrei de volta. -- Tudo no lugar, Major.
Ouvimos o carro ser estacionado e passos vindo até a porta. Alguém tocou a campainha, Du se levantou da porta, sinalizando pra mim, e indo pra cozinha.
-- Tá aberta! -- Ele gritou e eu ouvi a porta ser aberta lentamente. Passos cuidadosos avançaram, quase sem produzir som. -- Tô na cozinha.
O garoto passou para sala de jantar sem notar eu e Vi atrás do sofá. Conforme o plano, nós o seguimos bem devagar até ver ele entrar na cozinha. Assim que ele virou, eu e Falcão nos aproximamos rapidamente já mirando a arma e molhando toda sua camiseta. Du puxou a arma dele de debaixo da mesa e disparou no rosto do garoto.
-- Seu filho da mãe! -- O rapaz disse, com a voz falhando, como todo adolescente. Mas logo disparou a dar uma gargalhada alta, escandalosa como a de Drummond.
Michelangelo então se virou pra nos ver. Sua camisa branca estava ensopada e sua bermuda listrada não tinha escapado, estava cheia de respingos. Usava all star simples, os olhos azuis me fitaram, o rosto com sardas e o cabelinho meio cacheado castanho saia do boné. Ele era um típico skatista ou rapper carioca, não sabia definir.
-- Falcão e... Quem é a mais nova bela senhorita dessa casa, meus caros? -- Seu tom ganhou um ar galante e eu senti o rosto corar. Ele era quase do meu tamanho.
-- Caetano! -- Du disse, se aproximando. -- A garota que nem mesmo o seu violão vai conquistar, meu jovem garanhão, essa ai tu não consegue. -- Bateu na aba do boné o derrubando pra trás e bagunçando os fios. -- Você sossegue, viu? Nada de vir arrastando asa pra ela igual fez com Vitória.
-- Ah meu caro irmão, ninguém resiste a esses olhos azuis. -- Ele se soltou do irmão, se aproximando de mim com ar confiante. Segurou minha mão se curvando e dando um beijo nas costas dela. -- Bukowski, ao seu dispôr, my lady.
-- É um prazer, Bukowski. -- entrei na brincadeira fazendo uma saudação cafona fingindo puxar meu vestido enquanto abaixava, mas eu estava de short. Era engraçado e fofo ver um garoto de 14 anos tentando algo comigo.
-- Então é assim, tu arrasta asa pra qualquer uma? -- Vitória se fez de ofendida. -- Achei que tínhamos algo, Bukowski, mas você é igual a todos os outros!
Ele riu, uma gargalhada boa de ouvir. Abraçou ela, que bagunçou ainda mais aqueles fios. Ele tinha um sorriso bonito, faria sucesso entre as meninas. E com certeza com minha irmã mais nova. Ri sozinha com o pensamento. Michelangelo revirou os olhos pegando sua mochila da sala e subindo para o quarto, dizendo que iria trocar de roupa. Peguei o celular, na expectativa de alguma mensagem da minha namorada, mas nada. Agora que eu finalmente estava na mesma cidade que ela, parecia que estávamos mas distantes do que nunca. Suspirei, pesadamente.
O resto do dia foi calmo, eu não estava com cabeça para estudar então passei a tarde jogada no sofá vendo série. Quando a noite ia chegando, Drummond me pediu pra ajudar Bukowski no trabalho de ciências dele, enquanto ele e Vitória fariam o jantar.
Eu e ele usamos a sala de jantar como área de trabalho. Pelo que entendi, tínhamos que fazer uma maquete do sistema solar. Pincéis, potes de tintas e pedaços de jornal velho forravam a mesa de madeira. Inúmeros pedaços de isopor estavam espalhados pra todo canto.
-- Vamos usar o jornal pra dar formato pros planetas, afinal eles não são redondinhos igual essa bolas de isopor. -- Bukowski disse, pegando a cola e começando a dar forma pros seus planetinhas. Fizemos todos os planetas primeiro de jornal e fizemos o furinho pra prender o gravetinho. -- Você pode ir pintando eles enquanto eu monto o sistema pra eles conseguirem girar?
Concordei com a cabeça quando ele começou a montar a base com pedaços de madeira e pregos. Ele me passou um papel onde ele tinha feito a palheta de cor de cada planeta, agora só tinha que pinta-los. Voltei a ser criança com aquele pincel na mão, fazendo efeito de luz e sombra como ele me pediu pra fazer. Eu estava incrivelmente satisfeita com minha obra de arte e tinha certeza que se eu tivesse me dedicado assim na época de escola não teria sido tão difícil passar pra medicina. Bukowski montou uma base que fazia todos os planetas serem móveis ao redor do sol, que já estava pintado e sendo preso.
Peguei as próximas tintas e fui pro último planeta que faltava pintar. De acordo com a paleta de Michelangelo, precisaríamos de laranja, amarelo e verde. Comecei a espalhar as cores no planetinha que na minha cabeça, até então, era vermelho. Ele ficou bem melhor com aquelas cores, do que com um simples vermelho. Quando terminou de colorir, encarei o planeta na minha mão. Eu conhecia aqueles tons, aquela paleta de cores não era estranha pra mim. Fiquei longos segundos o encarando e suspirei. Finalmente achei nome pra cor daqueles olhos agora não mais indescritíveis.
Vitória tem olhos cor de marte.
Mas me impedi de pensar nisso, ajudei ele a pintar o isopor de baixo que tinha que parecer o espaço. Respiramos tinta branca e azul clara, desenhados asteróides e um foguete. Quando terminamos, Vitória avisou que já ia trazer o jantar pra mesa. Limpamos a mesa e eu me sentei ao lado da cacheada pra comer.
Drummond tinha feito um belíssimo frango assado a la vinho branco com batatas para nós. Para Vitória, vegetariana, tinha uma salada bem variada com pedacinhos de torrada. Ela servia salada para todos, até mesmo pra mim que não gostava nem um pouco.
Encarei aquele monte de coisa verde-laranja-vermelha com pedaços de torrada no meu prato que estava tão organizado. Arroz num cantinho, batatas no outro e o frango em outro. Nada se tocava. Até ela colocar aquele punhado de salada ali. Mas, curiosamente, as cores combinavam. Combinavam com o prato dela e isso me fez comer sem reclamar. Bukowski e Drummond era parecidos em quase tudo. O jeito que comia, como mastigavam, como segurava o garfo, toda a etiqueta impecável em não apoiar cotovelos na mesa e não sujarem o rosto, e mastigar muitas vezes.
Vitória já parecia mais casa. Prato misturado, comendo rápido, falando animadamente sobre o novo projeto do teatro com Drummond, elogiando o trabalho de ciências do Michelangelo e falando o quão boa a comida tava. Falava alto, ria, era confortável. Era pedacinho de lar. Lembrei dos almoços em família de domingo, onde era sempre festa igual ela.
Os olhos cor de marte me encararam por algum tempo quando me notou a observando. Ela me dava uma saudade do meu finzinho de mundo lá em Araguaína. Suspirei pensando, de novo, como eu nunca esbarrei com essa juba por lá?
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C o l e g a s.
FanfictionAna vai para São Paulo estudar medicina e morar com sua namorada, Letícia. Porém, até essa se estabilizar para a vida a dois com Caetano, Ana tem que passar um mês morando numa espécie de casa universitária. Ela só não contava com a presença de Vitó...