M i s t é r i o

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Era cerca de nove horas quando todos o círculo de pessoas começou a encher. Era quinta a noite, uma semana depois da minha dança com Vitória. O clima entre a gente ficou meio estranho depois de eu ter fugido dela, não tinhamos falado sobre, mas vez ou outro dávamos boas risadas lado a lado. Drummond tinha nos trazido para uma roda de poesia de rua, e eu concordei em vir quase de imediato, já que Letícia fez hora extra no trabalho. De novo. Como fez a semana inteira. E claro, quando estava perto, agia como se nunca estivesse longe. Letícia e eu nunca brigamos por ciúmes. Nunca tive dúvidas sobre ela ser fiel, ela sempre deixou claro que era, mas agora, as paranóias tomavam conta de mim. Nossas brigas sempre era por eu não querer contar para a minha mãe, ou por nunca ter transado com ela. De resto, nunca tivemos motivo para brigar sobre. Letícia sempre foi meio desligada, mas desde que começou a trabalhar, era surreal. Tentei não pensar nisso, foquei no local.

Era uma estação de metrô abandonada. As entradas dos túneis estavam fechada com madeira, dos dois lados, e o vagão estava parado nos trilhos. A galera havia retirado a parte de cima, ficando só a metade do trem ali. O resto, tinha virado decoração de algum outro lugar. As barras de metal ficaram, e usaram essa estrutura do vagão para construir um teto de vigas de madeira e encher de pisca-pisca, criando um palco improvisado muito bonito. Os assentos do vagão havia sido retirados e montados num padrão de cadeira de teatro, e estavam bem conservados até. Todo o local contava com grafites bem desenhados. Me sentei ao lado de Du e de Falcão, assistindo o garoto que abria a noite. Os cabelos castanhos preso em coque e os olhos cor de cobre brilhavam na meia luz dos piscas-piscas natalinos.

-- De certa forma, quando tudo tiver acabado, e não te sobrar mais nenhum cigarro. -- Contou ele, no final de sua poesia. -- Vai lembrar que teu vazio droga nenhuma preenche, que o espaço aberto aí tem o formato exato do meu amor, que tu no lixo, jogou.

Aplaudimos forte, uma galera mais emocionada que a outra. Du se levantou e se dirigiu ao palco. Ajeitou sua camiseta de botões e de manga curta de estampa de planetinhas, limpou a garganta duas vezes e passou a mão no cabelo.

-- Ela tem aquele sorriso de quem sabe tudo que tu aprontou na noite passada. -- Ele começou, sorrindo de canto. -- Aquele sorriso que conhece todos seus pecados. E ao mesmo tempo, esse sorriso carrega a inocência dos anjos mais puros de Deus. -- Seus olhos se focaram nos meios e eu por um segundo sentia o rosto queimar achando que ele poderia ler minha mente e me ver pensando em Vitória. -- Ela é o equilíbrio perfeito da malícia com a ingenuidade. -- Seus olhos foram para Falcão, que sorria. -- Ela faz jus ao signo, tudo muito balanceado e na medida certa, perfeita libriana treinada na arte de conquistar corações. Ah, se ela soubesse a grandeza que tens, que faz parte de algo magnífico, que o universo foi feito apenas para ela admirar suas cores e dizer o quão mágico aquilo é. -- Ele fechou os olhos, como se lembrasse de algo bom. -- Ela faz parte daquelas constelações que guia os marinheiros, mas também é a sereia que faz eles perderem o foco. Ela é como uma noite estrelada, um vasto breu pontilhado de histórias. Ela faz parte da galáxia e ninguém contou pra ela. Ela tem uma grande estrela que chama de coração e tem todos os planetas pintados na pele. -- Ele então ganhou um ar sonhador. -- Ela é o espaço e eu, bem -- Sua risada anasalada fez eco no vácuo de som criado na estação. -- Eu sou o garoto que quer ser astronauta.

Todos nós aplaudimos forte, minha respiração ainda sem controle por eu ter achado um pouco de Vitória em cada um daqueles versos. Ela se levantou ao meu lado, me deixando ainda mais surpresa. Caminhou até o “palco” e esperou todos se acalmarem pela poesia de Du. Arrumou os cachos que estavam bem armados e reluzia os piscas-piscas.

-- Se aponto pra estrela e o dedo cai, como é que eu conto quantas tem lá no céu? -- Ela começou, com seu sotaque carregado. Toda minha atenção era dela. -- Porque depois dos cem e dos mil, eu nem lembro mais quais contei, e quais deixei de apontar. -- Ela gesticulou com as mãos, movimentos exagerados, dando um drama a mais para sua poesia. -- Pro mundo ser o mundo que hoje é, o que é que teve de se acontecer? O que é o que se fez, e se deixou de fazer? -- As dúvidas dela fizeram sentido na minha cabeça, sem notar, meus dedos já começavam a caçar acordes para musicar aquilo tudo. -- Não sei, não cabe a mim, não tem nem quem diz saber. Quem é que fez o relógio, com todas suas horas, e fez caber o dia inteirinho em dois ponteiros? -- Num tom de pergunta de criança, Vitória escreveu a poesia mais linda que já ouvi. -- Como posso contar o tempo que tem que passar, quantas vezes despertar, pro depois de amanhã chegar? Quantas vezes o relógio tem que girar? -- Eu já estava completamente entregue as perguntas que ouvia. -- Quem prendeu a lua lá no céu, e ensinou a ela a hora de aparecer, assim que sol se deitou pro dia terminar? E de tantas línguas desse mundo, porque o português que me ensinaram, lá no Japão ninguém consegue decifrar? Tantos arigatô, merci, tantos saionará, arrivederci. -- Me faltou ar em ver ela pronunciar os idiomas europeus, com um R puxado característico, mas com um tom de interior tão casa. -- De hora em hora o relógio roda, um dia em duas voltas do maior, vinte e quatro do menor, quantas vezes terei que abrir os olhos pra ser um novo dia? Já é tempo de levantar? Não sei, nem sei, nem vou saber, nem tem quem ousa tentar responder. -- Aquele sorriso alinhado se acendeu na estação abandonada. -- Liberdade é não saber, graça é se perguntar, como é bom sonhar e a verdade ninguém vai achar. Nem adianta procurar, esse baú bem escondido está, enterrado nos sete mares. A beleza está no não saber.

Aplaudi como se Machado de Assis estivessem a minha frente. Sua poesia ainda ecoava em minha cabeça, me fazendo reorganizar e preparar tudo em canção. Queria escrever todo aquele poema em ode dela. Queria conhecer mais sobre os relógios que ela falou, queria visitar a lua com ela e saber como que ela sabe a hora de ser rainha do céu. Vitória sentou ao meu lado e eu não conseguia parar de olhá-la. Queria ver mais daquela criança curiosa que habitava dentro daquela pele albina. Queria mais daquelas dúvidas que agora moravam em mim também. Os olhos dela estavam focados nos meus e ela sorria como se a felicidade fosse só ter a liberdade de poder se perguntar tudo aquilo e sonhar com as respostas. Eu mal ouvia a nova poesia declamada, minha cabeça estava a mil nas incertezas que Vitória havia me enchido.

-- O que foi, Biscoitinho? -- Ela me perguntou.

-- Me leva pra conhecer todas essas loucuras que tu tem guardado atrás desses seus olhos cor de marte. -- Respondi, num sussurro. O sorriso dela vacilou, não de maneira negativa, mas como se minhas palavras tivessem um efeito nela. Ela se aproximou pra me ouvir melhor.

-- Olhos cor de que, Aninha? -- Perguntou.

-- Cor de Marte, Vi. -- Murmurei, encantada demais para ter noção das palavras que saiam da minha boca. -- Como o planeta. Você carrega o planeta todo nos olhos… Não me surpreende nada sua alma ser de outro mundo.

-- E tu tem olhinhos de jabuticabas. -- Ela sorriu, fiz cara de quem não entendi, mas logo explicou: -- Doce, como tua alma. Levemente ácido, como o seu senso de humor.

Nos encaramos por longos segundos até escutamos novas palmas tomando conta do lugar. Meu olhar se desviou do dela, ainda sentia a alma dormente pela sua poesia. Eu queria me perder ainda mais nos devaneios de Vitória.

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