Capítulo 2

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Ainda estava na primavera. As noites eram frias e por vezes chuvosas. Quando Ryusei saiu de sua "casa" tudo tinha um cheiro bom de chuva. Deu alguns passos dentro da floresta e encontrou o menino encolhido embaixo de um arbusto todo molhado e tremendo. Quando tocou nele percebeu que a febre queimava o pequeno. Pegou Akise nos braços e correu para dentro.

Olhou em volta e lembrou que não tinha nada ali. Dormira por cem anos e tudo de antes de seu sono tinha se desmanchado com o tempo. Não tinha uma cama, nem tecidos ou roupas. Pegou o garoto novamente e decidiu ir ao templo. Ficava só alguns minutos dali. Longe da vila. Longe das pessoas. Como todo dragão, Ryusei gostava de ficar isolado. Desceu a trilha sentindo um pouco de apreensão.

- Monge!! – Gritou Ryusei. –

O monge saiu de sua casa. Um anexo perto do templo. E correu ao seu encontro.

- O que aconteceu?

- O menino... está muito doente... eu...

O pesar e o arrependimento o impediram de falar mais.

- E seu poder de cura?

O Kami sacudiu a cabeça.

- Ainda não despertou completamente.

Deitaram Akise em um futon no quarto de Takai. Enquanto esse despia o menino pediu ao dragão que fosse buscar água para lava-lo e tentar baixar a febre.

- Vá banhando o garoto, eu vou buscar algumas ervas.

Nunca tinha visto tantos ferimentos numa pessoa. Com um toque de sua mão a coleira com o cadeado se soltou. Ele jogou aquele objeto repugnante para longe. Começou a lavar Akise com água fria. Limpar e baixar a febre. Essa era a meta. Ryusei tinha o poder da empatia e por cada ferimento que passava via uma cena. Golpes de chicote, queimaduras com objetos em brasa, cortes. A cada cena uma amargura descia por sua garganta como se tivesse engolindo fel. Quando tirou a atadura do olho. O sangue fervia nas veias do deus dragão. Suas mãos até tremiam.

Ele via a cena se desenrolar a partir do toque no ferimento como se estivesse acontecendo na sua frente.

**

 Akise estava amarrado a uma cama. Um homem grande e corpulento estava em cima dele e espancava o menino.

- Você não vai mais fugir moleque! Não percebe que pode perder as pernas, os braços, esses lindos olhos lilases. Enquanto entrar no cio os ferormônios vão fazer os alfas pagarem a mim para ter você.

O maior ria olhando o menor com malícia e maldade. Pegou um tição em brasa na lareira.

- Vou deixar isso mais claro.

O pequeno se debatia sentindo o calor da ferramenta em brasa aproximando-se do seu rosto. Sentindo uma dor excruciante no olho esquerdo desmaiou. Quando acordou sentia o membro do homem entrando no seu corpo. Não sentia nada. Seu olhar vazio estava fixo num ponto.

**

Quando o monge chegou com o remédio encontrou o menino sozinho. Limpo. Algumas cicatrizes mais fracas. Principalmente a do olho. Colocou a beberagem nos lábios do pequeno e esperava ele engolir devagar. Pacientemente repetiu os mesmos gestos até todo o líquido ser ingerido. Cobriu-o com uma manta e saiu para o jardim. Viu Ryusei Kami na beira do lago e o reflexo do sol fazia as lágrimas brilharem no semblante do deus dragão. Sorriu consigo mesmo. No final das contas os dois seriam a cura para o coração um do outro.

**

Entre o estado acordado e desmaiado causado pela febre Akise sentiu ser elevado do chão onde se encontrava na floresta. Percebeu que era o dragão que o levantava.

"Será que ele vai me devorar agora"?

Ficou mais escuro. Devem ter entrado na caverna. Depois mais claro. Saíram? Para onde ele o estava levando? Nesse momento apagou de novo.

Quando acordou notou estar deitado num futon e sem roupas. O choque da água fria no seu corpo febril arrepiou sua pele o fazendo tremer. Não conseguia discernir quem cuidava dele. Onde estava? A cabeça latejava e não conseguia abrir o olho por muito tempo nem se mexer. Tudo doía.

"Devo ter desmaiado de novo".

Sentia pontos quentes em seu corpo. Nas pernas, no abdômen, abriu o olho e encarou grandes olhos verdes que vertiam água. Ryusei chorava enquanto lambia suas cicatrizes. Os locais onde ele tocava sua língua paravam de doer. Lambeu seu olho esquerdo. E uma leveza tomou conta da alma de Akise. O deus dragão acariciou seu rosto dizendo coisas numa língua que ele não entendeu. Deve ter feito alguma expressão de confusão pois o deus falou – Descanse, meu pequeno. – Mais tarde entenderia o que aconteceu?

"Ele está provando meu gosto"? – Riu internamente. – "Deve ter desistido de me comer, devo ter um gosto bem ruim".

Acordou por um momento sentindo um copo com um líquido morno ser forçado sobre seus lábios. Tomou devagar a bebida amarga. Sentiu um pouco de náuseas, mas no final estava bem melhor.

Dessa vez adormeceu. Imaginou ouvir um canto doce perto de seu ouvido enquanto mãos suaves acariciavam seus cabelos. Nunca dormiu tão bem como naquele momento.

**

 Já fazia dois dias que Akise dormia. Takai improvisou outro quarto para si próprio. Espantou-se quando Ryusei Kami pediu ajuda e transformou a caverna numa casa. Conseguiram várias doações em troca de remédios feitos com a saliva do dragão, por suas propriedades curativas. Até fecharam um acordo de comercialização desses emplastros.

O monge explicou como o mundo funcionava agora. E o Kamisama pareceu entender. A mudança de atitude do deus foi surpreendente.

Nem acreditou quando ouviu seu nome sendo chamado naquele começo de dia e viu o Kami carregando o garoto nos braços. O menino estava queimando em febre. Não sabia se sobreviveria até o dia seguinte. Pediu para o dragão lava-lo e correu para pegar umas ervas rezando ... para quem se o deus estava ali na sua frente. Ficou confuso com esse pensamento. Sacudiu a cabeça e focou no que tinha que fazer.

Quando voltou ao quarto onde estava o rapaz levou um susto. Viu o homem-dragão lambendo o corpo do menino. Primeiro pensou em dar uma paulada naquele pervertido. Depois percebeu que a cada lambida as cicatrizes ficavam mais claras e desinflamadas. O poder de cura ainda estava fraco para livrar totalmente Akise dos ferimentos internos e da febre. Mas, as lambidas pareciam uma tentativa de aliviar seu sofrimento.

Mandou o dragão sair para ministrar o remédio e cobrir o menor. Quando procurou com os olhos percebeu que as lágrimas que o deus derramava não eram só dele. Olhou novamente Akise e sorriu. Sim... duas curas tinham começado.

**

No final do segundo dia Akise acordou. Takai estava do seu lado. Dormindo numa cadeira de chão. Percebendo que o pequeno se mexeu, o monge sorriu.

- Está com fome?

Akise balançou a cabeça numa afirmativa. Takai saiu para buscar um lanche e Ryusei entrou. Sentou ao lado do futon. Um silêncio constrangedor instalou-se entre os dois. Não sabiam o que falar um para o outro.

- Você está sentindo-se melhor meu pequeno? – Começou o dragão. 

Solstício de verão [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora