04. coração azul

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Percebo que as relações possuem essa irritabilidade de costuras mal feitas, do cutâneo exposto quando a agulha penetra pela segunda vez. E, se Yukyung precisasse costurar um milhão de vezes, eu sei que faria.

Seu sorriso doce me enjoava, tão açucarada como diabetes nas veias.

Yokyung era a única que sempre soube o que fazer se tratando de Yoona, cobrindo seus braços de pulseiras feias, no aniversário, na escola, em festas saturadas. Ela arrumava o cabelo de Sohee para trás, aconselhava Karin em seu sutil crescimento rumo à adolescência, repreendendo-a a me seguir nas travessuras.  Tomava as rédeas da situação, cuidava de ressacas insuportáveis. A gente jogava jogos de tabuleiro no silencio de nossa própria vergonha enquanto Yukyung levava Sohee para cama.

Ter Yukyung era como a benção profética da igreja, a vontade evangelista de subir aos céus. E, durante as noites silenciosas, ela pairava ao nosso redor, compreensiva. Yukyung, estudiosa, culta, engraçada, delicada. Eu nunca entendi sua insistência, nós, presas na teia de fragilidade rebelde do mundo, saltitando de encontro ao fogo, à tragédia de nós mesmas, influenciáveis pra caralho. Acho que deixei de ser má por muito pouco.

Ela gostava de ler perto dos bosques do campus. Me contava, em sussurros urgentes, como a maldade do mundo perpetrava pelas brechas do universo na ausência de palavras de amor. Eu não acreditava. Yukyung tinha uma crença efervescente nas pessoas, e eu penso que se não a tivesse ignorado todas nós estaríamos seguras o suficiente dentro da própria ignorância forjada.

Yukyung foi o combustão estelar. Vê-la se tornar sombria no encalço de nós era um pesadelo ansiado, a dúvida de infância. E eu me imagino ao seu lado, perto o suficiente para tocar seu rosto, perguntando por quê, dentre tantas vezes, ela escolhera aquela para me ausentar do perdão.

Um pássaro pequeno, lançando asas machucadas acima do rosto, Yukyung indo para longe, mas tão longe, que nem mesmo eu, agarrada a todas as outras, pude alcançá-la. O pássaro segue procurando um novo ninho e eu recebo silêncio em resposta.

Ele sobrevoa a praia. Eu ouço as ondas quebrando.

O mar é um lar inusitado, Yukyung.

ㅡ fusca azul. elrisOnde histórias criam vida. Descubra agora