João acordou cedo naquela manhã, o sol entrava pela janela do quarto dando-lhe a luminosidade matinal, que o arame de um berimbau pendurado na parede fazia questão de refletir em sua finíssima superfície, ouvia-se já os passarinhos acordando as árvores, e ouvia-se também sua mãe, Jacira, gritar de lá da cozinha que era hora de acordar para ir à escola.
- Já tô indo! - Gritou ele deitado na cama.
Sentou-se na cama procurou o chinelo, a lembrança do pesadelo aflorou, ele pensou um pouco para se certificar de que aquilo não tinha passado de um sonho; calçou os chinelos e saiu andando pelo corredor. Tudo aquilo lembrava o que tinha passado havia algumas horas. Olhou a porta do quarto de seus pais, estava totalmente aberta, a cama estava arrumada; certamente seu pai já teria saído para ir trabalhar.
Chegou à cozinha e viu sua mãe de costas, com os cabelos amarrados com uma presilha branca contrastada no escuro cabelo. Jacira era uma mulher que aos 36 anos conservava uma beleza realmente invejável: sua pele morena, firme e brilhante, trazia traços inegavelmente indígenas, os cabelos longos e negros contornava um rosto arredondado. Seus olhos eram grandes, levemente puxados, e como os cabelos, igualmente escuros, um corpo, ainda que depois de duas gestações, jovem e gracioso. Já que seu fenótipo era a comprovação de seus genes indígenas; trazendo toda a história de ligação com os primeiros povos das terras brasileiras nunca se incomodou com apelidos e brincadeiras ligadas a isso.
Vez por outra se empolgava ao relatar as histórias que sua mãe a contava sobre seu povo: de onde vieram, seus antepassados, mitos... Muitas vezes o próprio João, quando menor, pedia a ela para contar alguma; então ela narrava contos e lendas sobre seres que os índios acreditavam viver nas florestas, nos campos e nas águas.
O filho sempre perguntava ao final dos contos algo parecido, um misto de dúvida e compreensão entre realidade e ficção. Embora descrente, sempre citava as lendas sempre que ia ao sítio do seu tio-avô Agostinho, e saía para pescar, procurar algum fruto ou madeira na pequena fração de mata que a pequena propriedade abarcava.
E a floresta que sempre conserva um ar de mistério nos seus sons, no silêncio, no vento, na atmosfera húmida... E sendo, aquele menino, como aprendera, um pouco índio, se sentia bem mais inserido e curioso para descobrir tais mistérios.
João sentou-se à mesa, e mesmo sem olhar para ele sua mãe falou:
- Vá tomar seu banho antes do café.
- Ah mãe! - Resmungou ele com a cara amassada, ainda rouco de tanto sono. E foi andando pesado cumprir o dever.
Saindo da cozinha viu uma tolha flutuando em sua direção. Era Ana Clara que vinha escondida por detrás do tecido grosso e a outra mão esfregando olhos e num farto bocejo. Disse com vozinha de menina de 7 anos:
- Toma, bom dia, mano!
- Obrigado... - Murmurou ele preguiçoso e passando a mão esquerda nos cachos escuros da pequena.
A bronzeadinha já de banho tomado, sentou-se com as mãozinhas segurando as bochechas emolduradas pelos cabelos pretos e molhados divididos em cachos definidamente lindos, trazia olhos negros como os da mãe, e entre mais alguns outros traços acentuados de sua descendência, destacavam-se os lábios marcados e um nariz pequeninho que se perdia na simetria infantil daquela face.
- O que vai ter de lanche hoje, mainha? – perguntou enquanto já devorava o cuscuz com leite com uma colher maior que a boca.
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ATIAÎA Sangue do Passado (DEGUSTAÇÃO).
FantasyUma pacata cidade do interior é chacoalhada por acontecimentos estranhos. Desaparecimentos de pessoas, sonhos inquietantes, indivíduos misteriosos... Nos meandros desses eventos, uma família comum se vê rodeada de enigmas e mistérios que datam de ce...