V - De Volta ao Cotidiano

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Quando a manhã do oitavo dia após a notícia do desaparecimento dos presos raiou, o temor da população desaguou no rio da incredulidade. O início do dia voltou a ser um momento de encontros e saudações recheadas de sorrisos. Os passarinhos tinham companhia agora no arrulhar daquela pequena cidade. As conversas deste novo dia voltavam ao mesmo tema que tencionou toda a semana que passou. Frases duvidosas e questionamentos apareciam sem necessidade de respostas, pois, por mais que as dúvidas persistissem, havia uma "esperança de más notícias" para validarem o temor compartilhado pela população.

Os meninos já estavam prontos. Havia muitos dias de falta nas aulas e precisavam voltar. Clara falava o tempo todo das amigas e amigos que não via e João estava calado à mesa terminando de comer uma maçã.

—Pegue suas coisas Clara, a van chega em 10 minutos – falou a mãe que havia contratado um serviço de transporte escolar, talvez para suavizar a sensação de insegurança que os acontecimentos recentes trouxeram.

Durante toda a semana a quantidade de transportes escolares particular passando por aquela rua havia aumentado consideravelmente, a cidade perdera algumas das perninhas mais novas que sacudiam as manhãs de vento frio e sol morno... para João nada havia mudado já que ser mais velho significava, às vezes, a parte sacrificada pela economia da família.

Clara saiu a porta, olhou para a direita e viu a vizinha e o gato amarelo sentados no batente de madeira. A velha acenou na sua particular maneira enérgica, a menina respondeu e correu para o meio-fio. João saiu logo depois, deu um tapinha nas costas da irmã e seguiu seu caminho. O transporte conduzido pelo motorista bigodudo estacionou e levou a criança ansiosa em meio as tantas outras barulhentas.

A velha na outra casa levantou-se e veio andando até Jacira que se encontrava na porta. Na maioria das manhãs após a saída das crianças elas conversavam qualquer coisa.

—Bom dia, Jacira! — falou a velha em passos lentos.

—Bom dia, vizinha... — respondeu a morena prontamente. —Tudo bem? A senhora viu Alves ontem aqui? O pardalzinho que os meninos trouxeram já está bom, veio perguntar espantado se demos alguma coisa para ele, por acaso a senhora deu algum remédio a Clarinha?

—Pássaros são sempre mensageiros —respondeu ela como que estivesse em outra conversa, e emendou: bom os meninos terem ajudado, boas crianças essas.

—Sim, sim... — sorrindo concordou. — Mas é estranho, acho até que ele já foi solto, sarou muito rápido, Alves falou que seriam muitos dias para a melhora... não tem nem duas semanas.

—Você tem uma verdadeira curandeira em casa — sorriu timidamente a velha. — a menina Clara tem um coração que cura qualquer um...

—Aquela tem um coração imenso mesmo – perdeu-se por segundos em pensamentos e um olhar sorridente. — Achei estranho, Clarinha o tocou pela gaiola no dia que o trouxe para casa e foi dormir um pouco febril, pensei que tivesse pegado alguma doença do bicho, mas no dia seguinte isso... a senhora não acha estranho também?

—Já vivi muito tempo para não achar coisas dessas um estranhamento da vida — a velha falava com a certeza de um médico experiente. —Você acredita no mau-olhado?

—Não sei... minha mãe sempre falava que tinha medo do "olho dos invejosos", mas não sei se isso é verdade. Acho mesmo que as pessoas antigamente acreditavam em muita coisa por falta de estudo, mas por que tá me perguntando isso? —Indagou intrigada, semblante interessado e algumas risadas.

ATIAÎA  Sangue do Passado (DEGUSTAÇÃO).Onde histórias criam vida. Descubra agora