"Seu all star azul combina com o meu preto de cano alto."
- All Star (Nando Reis)Amora
Meu despertador tocou e o chutei para que parasse, me virei para olhar as horas, mas só posso ver borrões. Ótimo, nada mudou com a minha cegueira. Onze horas. O que? Como eu posso dormir tanto sem perceber? Me levantei correndo e fui para o banheiro, marquei com Ashley em uma hora e mal acordei, mais um dia perfeito com Amora Rosier. Sim, esse é meu nome e parece ser homenagem a uma jardineira compulsiva. Metade dos meus colegas não entende o porquê de "Amora" ou sequer sabe o que isso significa, ser uma brasileira em meio a milhares de americanos causa inconvenientes como esse, ninguém entende as piadas com plantas e jardinagem.
Nasci no Brasil, mas recebi cidadania americana antes dos cinco anos, mesmo assim um leve sotaque continua comigo. A mudança deixou uma criança tímida com um pouco de ansiedade, mas uma amizade ou duas ajudaram na transição.
Me olhei no espelho quando terminei de me arrumar e me senti bem. Os óculos redondos e o cabelo curto me fazem parecer mais velha do que sou, na verdade, tudo sobre mim me faz parecer mais velha. Ouço músicas antigas, vejo filmes antigos, eu tenho uma alma idosa. Os vestidos vintage que roubei de minha avó serviam bem com os milhões de pares de tênis.
Coloquei um all star azul e um vestido floral, então desci as escadas pronta para um interrogatório sobre aonde iria, mas não foi isso que recebi. Adentrando à cozinha vi minha mãe preparando o chá, como todos os dias. Brasileiras, americanas, chinesas, britânicas. As mulheres da família Rosier são o verdadeiro significado da palavra globalização.
- Mãe? - ela não respondeu, me aproximei e chamei outra vez - MÃE? Dona Mônica?
- Ah, sim? Aconteceu alguma coisa? - respondeu ela, ainda parecendo distraída.
- Não. Só queria saber se posso ir na casa da Ashley.
- Outra vez? É a terceira essa semana. O que é tão bom na casa dela? Os biscoitos de Emma superam os meus?
- Nunca, mãe. É que o tal "garoto" chegou hoje, e Ash está animada, quer nos apresentar.
- E você quer isso? - perguntou ela, erguendo a sobrancelha.
- Na verdade, não. Mas você a conhece tanto quanto eu, ninguém diz não para Ashley McCarthy.
- Corrigindo, você não diz não para Ashley McCarthy.
- Acaba de dizer que eu não sou ninguém? Isso é terrivelmente depreciativo, Mônica.
- Isso é drasticamente exagerado, Amora. Agora vá, se eu vir seus tênis surrados aqui por mais um minuto, juro por Deus que te jogo em um chiqueiro.
***
Corri como nunca para chegar à casa das McCarthy. Como se fosse morrer se não me apressasse. Pensei em terremotos, tsunamis, vulcões, carros descontrolados, fãs loucas da Taylor Swift divulgando o último álbum. Tudo que poderia acontecer a qualquer momento, que faz com que em um segundo estejamos aqui e no outro não mais, que faz sumirmos sem explicar, sem esperar, para aonde quer que formos depois da morte. É viciante pensar nisso. As espirais de pensamentos não param, são a verdadeira catástrofe.
Apertei a campainha e esperei um pouco e então toquei outra vez, e me sentei na varanda, puxando meus fones. Legião Urbana. Beatles. Nando Reis. Queen. Aquele é meu mundo, sem frustrações e sem raiva, apenas palavras flutuando em uma melodia que é como um rio. Se as pessoas fossem música, talvez eu pudesse entende-las melhor.
Sinto alguém me cutucar, mas ignoro, deve ser Ashley atrapalhando minha playlist como sempre. Mas a pessoa insiste, então abro os olhos e não é ela que vejo em frente a mim, um garoto magro e alto, de olhos azuis como o céu no verão. O cabelo escuro despenteado e o all star preto de cano alto o fazem parecer descolado de um jeito natural, como se ele não percebesse o efeito que tinham. Nesse exato momento, enquanto ouço "seu all star azul combina com o meu preto de cano alto", percebo, quase rindo da ironia de nossos tênis combinarem com a música, que esse é Austin. O "garoto".
Me levanto e digo a única coisa em que penso:
- Você não é ruivo.
- Nem você - diz ele, incerto, mas sorrindo de leve - nem todos nós somos ruivos, sabe?
- Sério? Nunca imaginei. Mal chegou e já está me decepcionando, Austin.
- Então você tinha alguma expectativa? - ele não para de sorrir, por que isso me deixa tão irritada?
- Talvez, já que fiquei três semanas ouvindo Ashley falar sobre você sem parar.
- Ela parece gostar de falar. Sobre qualquer coisa. E tão rápido que eu mal acompanho.
- Você vai se acostumar com o tempo. Aliás, eu sou Amora.
- Eu já sabia, tinha imaginado na verdade. Ashley falou muito de você, bom, o máximo que pôde.
- O que ela disse?
- Que você fica corada fácil, gosta de roupas velhas e sua cor preferida é turquesa.
- Nada útil, não gosto de roupas velhas, são vintage. E EU TENHO ROUPAS NORMAIS, ASHLEY - talvez o grito fosse exagero, mas eu estava nervosa.
- Ninguém liga para as suas roupas, Ams - diz ela, parando na porta - que bom, já se conheceram, agora vamos. Tenho que te mostrar a cidade, cara do sotaque estranho. Vocês combinam nisso, mesmo o inglês de Ams sendo bem melhor do que o seu.
- Meu inglês não é "errado", só diferente. - respondeu ele.
- Você fala como se estivesse com um pepino na boca. - retruquei, era verdade. O sotaque britânico só fuciona em cantores, ou ruivos.
- Mas e você, de onde é? Não ouvi nada diferente na forma como você fala.
- Porque não tem, Ash não aceita isso. Sou parte brasileira, lá nós não falamos com vegetais na boca.
- Ams, desde quando você se corrompeu e ofende ingleses? Entrem no carro, eu não tenho o dia todo. Amora, você dirige. - diz Ashley, jogando a chave para mim, mesmo que eu já soubesse.
- Como você decide isso para ela?
- Sintonia é tudo. E isso é um acordo - respondo por ela.
- Eu ganho o carro, mas Amora é a única que pode dirigir. Cansativo, mas não passei no teste de direção. - completa Ash.
- Agora, entrem na merda do carro ou vão ficar aqui. - eu disse, então partimos.
<3
Desculpem a falta de recadinho no prólogo, mas aqui estamos nós. Esse livro é nosso orgulho porque ele
mostra muito de nós duas, nossa amizade, nossos gostos. Ele é como uma colagem das nossas melhores - e piores - partes. É como nosso filho então esperamos que gostem, amoras.
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Tudo entre começo e fim
Roman pour AdolescentsAmora e Ashley são duas amigas inseparáveis, mas suas vidas estão prestes a mudar quando um britânico chega em sua cidade. E o efeito borboleta gerado por isso é maior do que elas poderiam prever.