Carta 3

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  Santa Catarina
Dois dias depois

Olá Tempo,
Hoje o dia está chuvoso. Pergunto-me porque não há mais dias assim?
Faz dois dias desde que saí do castigo. Eles me deram comida no mesmo dia e pelo bom comportamento eu ganhei até uma gelatina. 

        Hoje estou um pouco mais viva. Não feliz, nem alegre. Viva.
Acontece que fiz uma reclamação a diretoria, no mesmo dia que saí. Falei que é um absurdo eles nos manterem tanto tempo trancados como indigentes. Sim, fiz uma declaração escrita. Não foi muito legível, bonita ou elegante. Mas ainda assim, entreguei ao vice-diretor antes dele sair no carro do patrão a negócios. Não tenho certeza se essa carta chegou até ele, mas as coisas estão mudando um pouco por aqui desde hoje pela manhã. 

         Ontem tive que comparecer a uma reunião de grupo estúpida. Sinceramente, que perca de tempo. Apenas dois pacientes falavam, eu e os cinco restantes só ouvíamos. Uma garota chamada Ana Júlia estava melancólica demais e não parava de chorar. Parece que ela chora a três dias seguidos. O seu nariz está assado e muito vermelho, de tanto escorrer. Não tenho certeza, mas pelo que  ouvi a enfermeira dizer, ela chora assim porque seu amigo invisível a abandonou desde que ela começou com a nova medicação. Ela parece sentir saudades deles. Coitada, está sofrendo a beça. Essa era uma das quatro além de mim que ouvia. 

       A mulher que falava, dizia basicamente sobre a sua vontade incontrolável de se jogar em uma banheira de espaguete. Dizia sobre o quanto queria rolar e mergulhar entre o molho de tomate e os fios do macarrão. O homem que as vezes falava, era apenas sobre religião. Ele tinha ideias sobre o juízo final, o apocalipse e a invasão dos alienígenas no nosso planeta. Ele tinha um sotaque muito forte de gaúcho e isso me irritou profundamente. Nada contra os gaúchos, mas não sei por que o sotaque forçado de alguns deles me irrita tanto. 

        Você estar achando que mudei da água para o vinho não é mesmo? Então é mais difícil se comportar do que parece. Eu apenas bufei. Estava irritada com aquelas pessoas, estava zangada por não poder ficar na minha "sela /quarto" e apenas bufei. O meu psiquiatra, pulou para agressão verbal. Dizendo que eu estava me sentindo incomoda demonstrava o comportamento de uma pessoa nada sentimental e estava sendo altruísta. Sinceramente, acho que ele tem uma implicância extrema comigo só porque uma vez quase acabei com a mão dele na porta ao sair de uma consulta. E ontem bem cedo ele implicou comigo, mexeu no meu cabelo e eu conseguiu morder a mão dele. E também aquela vez que derrubei café quente nele. Mas isso do café faz poucos dias...

        Bom, eu recebi advertência. Não fui para o castigo porque na véspera já estava ali e estava fraca para ficar mais tempo. Apesar de ele querer imensamente, acredito que ele não pode. Existe um limite de quatro dias, em intervalo de uma semana. Então ele achou que seria uma boa, me mandar limpar as folhas do jardim acabado enquanto chove a beça.
Bati o pé, resmunguei e ele estava satisfeito tentando conter o riso. Acontece que era isso que eu queria. E como precisava! 

         Minha nossa, como é bom poder tocar a terra, sentir o ar entrar pelos meus pulmões. Ver a vista, apesar daqui ser feio para caramba e tomar um banho de chuva. Tentei demorar bastante, mas ele sacou minha jogada. Depois de quase duas horas, me puxaram para dentro. Tentei fingir que estava brava, que era um absurdo ficar ali e talvez tenha dado para enganar. 

      Me mandaram imediatamente para o banho. E está ai uma coisa que vocês não sabiam sobre banheiro no manicômio: É individual. Sim, individual. Pois eles temem que nos ataquemos ou façamos algo. Então tem vários banheiros individuais, mas o problema é que são pequenos. Mas já é legal poder tomar uma ducha sossegada. 

        Mesmo com meus transtornos me consideram capaz de tomar banho sozinha, por isso, só esperam que faça isso depois de dar ordem. Tomei um banho bem demorado, parecia que estava suja de tudo. Não apenas da água da chuva ou a terra na qual rolei. Não temos produtos de cabelo, no máximo Barras de sabão para lavar e sabonete liquido. Esponjas e muitas toalhas.

          Assim que estava saindo do banheiro para voltar a sela, a psicóloga me encontrou e me levou para uma conversa. Estava tão cansada que acabei ouvindo tudo que ela dizia sem reagir nem fazer nada. Respondi algumas coisas, estava cansada demais para retrucar as baboseiras que ela perguntava. Ela achou que eu estava me comportando muito bem e anotou que eu devia fazer mais tarefas para gastar as energias. 

     Ótimo, agora serei uma espécie de multe tarefas.
Para minha graça ela permitiu que fosse liberada para o acesso limitado e temporário a sessão histórica da biblioteca. Mas que diabos! Agora serei cobrada semanalmente por um texto de síntese sobre fatos da cidade. 

        Parece legal não é mesmo? Mas não é tanto assim. Pois também estou responsável pela limpeza desses. Ou seja, vou limpar a biblioteca. É ruim, mas qualquer coisa é melhor do que o castigo. A descarada ainda queria que eu agradecesse pela oportunidade. Fui sínica ao agradecer, mas ela não entendeu a referencia. 

      Amanhã será meu primeiro dia como faxineira. Espero encontrar algum livro descente para pegar escondido. Bem, por hora estou escrevendo essa carta a você Tempo com o intuito de conseguir perdoar você por acabar com a minha vida. Por levar o tempo que ainda restava ao Matheus. E a morte, pois ela me fez sofrer muito nesses anos...

     Onde quer que ele esteja, sei que está bem. Sinto muitas saudades dele, do meu doce Matheus. Ao menos consigo escrever o nome dele. O psiquiatra diz que tenho que seguir em frente, procurar meu caminho e ser uma pessoa melhor. Que Matheus se foi e eu tenho que aprender a lidar com isso. 

      Mas puxa vida! Como é fácil falar. Difícil é seguir quando tudo que faço me lembra dele.

Suas últimas palavras foram para mim...

Triste, mas ainda respirando, 
Clarissa.

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