Carta 2

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                                                                                                                                                             Santa Catarina                             7 de Setembro

Olá Tempo
Ontem eu escrevi a primeira carta em meio a um estado de fúria. Desculpe-me. Estou com raiva ainda, mas agora a tristeza está batendo mais alto que o ódio. 

         Talvez você esteja confuso sobre eu estar de castigo, mas poder escrever. Acontece que aqui nesse hospital de maluco ninguém se importa com isso. Eles preferem a ideia de incentivar os pacientes a fazer coisas que gostam na tentativa deles melhorarem logo. Não que se preocupem, mas tem alguns aqui que realmente dão trabalho para eles. Querem que "Nos curemos" logo para se livrar dos pacientes problemáticos. Tem outros que na verdade são normais, mas ficam por aqui por estarem depressivos e terem tentado se matar ou ferir alguém. 

           Eu sou um dos que dão trabalho. Sou muito calada e agressiva. Este é o terceiro hospital Psiquiátrico que me colocaram. Saí dos outros dois por má conduta, problemas com enfermeiros, psicólogos e psiquiatras. Basicamente, me recuso a tomar os remédios e acabamos brigando. Fico agressiva e arrumo briga. Já quebrei alguns dentes de enfermeiras e um pivô do psiquiatra da segunda clínica. 

        Em minha opinião, nem todos precisamos nos medicar. Talvez um exercício para esquecer os problemas viesse a ser mais eficaz. Mas o remédio serve para nos deixar sonolentos e assim não fazemos muita bagunça para eles arrumar. 

         Sou a mais nova daqui, a maioria são idosos e adultos próximos dos quarenta anos. Não sinto falta de conversar sobre assuntos banais, mas ás vezes me pergunto o quê aconteceu comigo para chegar a esse estado deplorável. Ainda não tenho respostas, mas acho que a perda de Matheus foi um dos principais. Ou melhor, o fato de não ter conseguido supera-la dignamente. A culpa não foi dele, mas sim da importância demasiada que dei em não suportar o luto. 

          Ainda não comi nada desde antes de ontem. Ele tem uma política rígida sobre alimentação. O que acho ridículo. Acreditam que se tirar a necessidade extrema dos doentes, eles refletem e a volta para o salão se torna melhor. O que comigo não é permanente. 

      Como não tenho nada para fazer, eles deixam um bloco de notas e giz de cera. Sim giz de cera. Porque lápis e caneta têm ponta e os malucos como nós podemos furar o olho de um deles em um momento psicótico. Talvez amanhã eles me soltem. Afinal, não podemos ficar muito tempo sem comer. 

       Aqui no Castigo é basicamente um quarto pequeno e bem longe do teto. Não sei o porquê. Talvez a falsa ilusão da luz da janela que entra lá no alto e ilumina aqui em baixo. Tenho espaço para deitar, mas ainda assim é pequeno. Ele é todo branco. Hospitais são brancos, mas é um branqueamento exagerado que me aborrece. 

           O Hospital todo em si é pintado de branco por dentro e por fora. Muito sem graça. Os quartos fedem a álcool gel e produtos de limpeza. O cheiro é horrível quando se sente a tempo integral. O pátio lá fora é muito grande, mas inútil. Uma vez que só podemos sair duas vezes na semana, uma para manter o funcionamento fracassado da horta e outro nos momentos de recreação. Mas claro que desde que cheguei aqui a dois meses nunca fui lá fora se não a vez em que cheguei. Dizem que é privilegiado aos bonzinhos. 

          Estou entediada. Mas não tenho animo para escrever nada. Minha cabeça dói e sinto uma vontade louca de gritar, mas vou me conter. Gostaria de escrever mais coisas, mas sei que depois que sair desse buraco eles entregam essa carta para o meu psiquiatra. Ele lê e analisa se estou mentalmente arrependida e se sou capaz de racionalizar direito para sair do castigo. Mas quer saber Doutor Miguel, não me importo com seu diagnóstico idiota! Droga. 

         Não sei quanto tempo estou aqui. Pode não parecer nada, mas fiquei um tempinho sem escrever e dormi um pouco. Estou com fome. Detesto ficar com os outros, mas qualquer coisa é melhor do que ter que falar com o médico e fingir que estou me comportando para as enfermeiras babacas me deixarem em paz. 

         Ao menos tive a sorte desse manicômio não ser religioso. O primeiro era católico, tinha uma capelinha e nos obrigava a ir em missas. Eu não tenho religião. Não mais. Desde que a minha vida deslizou para a sarjeta não consigo mais acreditar em Deus. 

          Já fui católica, mas também acreditava em espiritualidade e questões como reencarnação. Matheus não era religioso, Dizia que o importante era fazer o bem a todos. Ele achava que a religião fazia as pessoas se comportarem de modo extremistas e que muitas delas usavam a fé dos seus fiéis para seu próprio bem. No caso o Catolicismo fez muito disso na época média. 

 
        Eu e Matheus conversávamos sobre tantas coisas que as vezes nem parecia que éramos namorados, mas sim dois colegas que discutiam questões políticas, sociais entre outras. Quando ele decidiu que queria fazer Geografia, confesso que fiquei animada. Eu pensava:
" Agora com vocês a Professora de História Clarissa e seu Marido, Professor de Geografia Matheus." Mas foi uma coisa boba que me cativou por pouco tempo. 

          Então quando estudávamos, surgiam conversas aleatórias sobre religião que vinham de perguntas sobre países do mundo com maior diversidade religiosa. Penso o seguinte: Não importa qual for a sua crença, Se você faz o bem para todos isso é o suficiente. 

      De repente me bateu uma vontade de reler assuntos da Cultura egípcia de 2.000 a.C.
Lembro que sempre gostei de história mas a minha escolha foi por estudar a antiguidade e entender a política. Causas e consequências que nos trouxemos a atualidade. 

         Talvez tenha algo na biblioteca dessa coisa. Engraçado, nunca fui a uma biblioteca de manicômios. Será que tem? Deve ter não é mesmo? Afinal, alguns pacientes gostam de ler. Sinto uma curiosidade tremenda. Mas acho que estou muito distante desse privilégio. Vou tentar me comportar. Não por medo do castigo. Nem mesmo dos tratamentos medievais daqui, mas porque gostaria de ter acesso aos livros e ao jardim.

Até logo, Tempo.

Ansiosa pela liberdade do castigo, Clarissa.

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