Carta 5

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Santa Catarina 
19 de Setembro

Amigo Tempo,
Estou me sentindo vazia. Sei que faz dias que não escrevo e o pior aconteceu.
Acharam as outras cartas que escrevi. Claro que o psiquiatra não levou a direção, pois eu falei muito sobre os seus abusos como profissional. Ele ficou furioso porque quem achou foi uma empregada que detesta-o. E agora ela o está subornando em troca de favores e dinheiro. Não sei quanto tempo ela ainda vai ficar por aqui, acho que ele vai dar um jeito de demitir ela. Ao menos ela teve a decência de me devolver, embora tenha feito cópia e ele nem sonha com isso! 

         Estou cheia de hematomas pelo corpo e no rosto. Sim ele me bateu. Fez ameaças e um "joguinho" como o próprio chama. No dia seguinte da última carta, a psicóloga me chamou. Tivemos uma conversa e ela disse que estava muito decepcionada pelo incidente com o doutor. Achei melhor ficar calada, pois ninguém aqui me ouve quando tento falar a verdade. E disse mais, que era uma pena, pois eu estava me saindo muito bem. Eu não aguentei e chorei um pouco. Porque me lembrei do meu pai. Ele falava muito isso para mim. Em um tempo longínquo. Naquele dia eu estava péssima. Tinha perdido a chance de tentar me distanciar dos grupos e do psiquiatra. Minha única chance tinha ido pelo ralo. 

         Não era minha intenção, mas ela se comoveu. Percebeu que eu estava muito para baixo, me deu uma água e um pastel que ela tinha na lancheira. Eu aceitei com relutância, mas acabei me afogando em choro e no pastel de carne. Sei lá porque eu chorei tanto. Ela disse que eu tinha um problema sério de guardar a dor em vez de falar sobre ela. E ficou esperando eu me recompor. A droga de se morar em um sanatório é que a consulta só acaba quando o médico quer. Não tem o lance de uma hora. Muito tempo depois, ela tentou me fazer falar. Disse que podia confiar nela para dizer o que sentia o que estava acontecendo para me deixar assim, tão emotiva. 

          Agradeci o pastel e disse que não conseguia falar sobre o assunto. Ela entendeu. E se levantou da cadeira, indo até o armário. Eu achei que ela fosse pegar remédios e tentei não bufar. Estava muito triste para dizer qualquer coisa contra os remédios, até queria pedir um para dor de cabeça. Mas a surpresa maior foi quando ela voltou. Trazia com ela uma pasta e uma lata de lápis de cor e canetinha. Sorriu para mim e pediu que eu aceitasse um acordo com ela. Fiquei sem compreender de início, então ela foi falando e fiquei sinceramente, agradecida. 

        Disse que se eu quisesse, poderia vir na sala dela quando não estivesse para escrever ou desenhar. Que ela tem aquela sala toda só para ela e que eu posso guardar meus trabalhos no armário dela. Se eu quisesse que ela lesse, era só eu deixar no armário aberto, ali. Apontou ela para um armário cinza. E se quisesse privacidade, ela entenderia e não iria ler. Nunca. Por mais curiosa que ficasse. E eu deixava em outro armário, que tem um barzinho de madeira. Ele tava vazio, ela abriu e me mostrou que cabia perfeitamente a pasta. E colocou um cadeado e me entregou uma chave.

         Falou que estava fazendo por mim. Que gostaria de me ajudar, mas eu tenho que permitir e ser sincera com ela. Que duas pessoas não formam duplas se só uma participa. E acrescentou que ia passar a confiar em mim, tal como gostaria que eu confiasse nela. Disse-me que ia deixar a lata com lápis de cor e canetas no armário aberto. E eu ficaria à vontade para escrever, desenhar, ou seja, lá o que eu quisesse. E me incentivou a fazê-lo. Abordando terapias que funciona a base de evolução escrita e artística. E ainda acrescentou:

" Não aceito não como resposta. Sei que precisa. Aceite e deixe-me ajudá-la Clarissa. Sei que não é uma má pessoa como dizem você apenas se perdeu na escuridão. "

Uma enfermeira bateu na porta, pedindo ajuda com um paciente que saiu do controle. Havia gritos pelo corredor e seguranças segurando um dos caras da minha terapia de grupo. Ela pediu licença rápida e saiu atrás da enfermeira. Fiquei um tempo sozinho. Conferi a sala e não achei chaves reservas do "baú mágico" nem câmeras.

        Então abri a pasta. Eram várias folhas de caderno, com linhas quero dizer. Estavam presas em um grampo, então abri e tirei umas cinco dali. Mas decidi tirar mais. Peguei oito no total. Fechei e dobrei em quatro as folhas. Peguei uma caneta preta da lata e escondi na roupa. Pensando nisso agora, talvez não tenha sido uma atitude muito bonita. Sendo que ela foi legal comigo. O nome dela é Letícia, psicóloga.
Quando ela voltou, eu estava fazendo um desenho simples, de borboletas, com uma frase de efeito:

" Estão à mercê dos ventos. Deus queira que ele sopre forte, para empurrá-las só para frente. "

       Letícia ficou feliz. Falou que é um progresso. Eu pedi se podia continuar na biblioteca. Porque eu gosto de livros. E lembrei o que houve. Ela disse que era uma atitude positiva e que ela tentaria convencer o doutor e os demais para que eu volte a ficar por lá. Claro que a decisão final era dela e dependendo do meu comportamento, eu saberia em breve. 

         Sai da sala e fui chamada na ala de recreação. Tive que fazer jogos com outros pacientes, e no sorteio caiu um cara. Seu nome é Fernando. Ele fala muito pouco, então nós entendemos fácil. Acho que ele não é maluco como os outros. Parece um cara mais normal. Vai saber o que houve para ele estar aqui, só sei que não foi algo bom. Caso contrário, para que estaria em um sanatório? 

      O psiquiatra me levou para a sala dele. Bateu-me com uma bengala que ele tinha, e prometeu que teria troco. Ele bateu forte nas pernas. Mas meu rosto ficou bem vermelho, pois sou branquinha e tenho uma pele sensível. Um tapa bastou para me deixar bem feia. Isso foi há dois dias. 

         Estou usando a folha que ganhei da psicóloga, no caso aquelas que peguei depois de ganhar. A caneta é boa. Simples da marca Bic. O que me lembrou duma época distante, de quando era estudante e curtia comprar canetas coloridas. Matheus às vezes aparecia com uma ou três canetas e um bloquinho de caça palavras para mim. Sempre. Mesmo depois de morarmos juntos. Eu ficava radiante. E ele ficava feliz também, porque gostava de me ver empolgada com canetas, livros, e principalmente Cartas. 

         Sempre gostei de escrever, mas principalmente cartas. Elas pareciam ter um tour mágico. Trocávamos cartas com certa frequência. Eu escrevia muito mais para ele do que o contrario, mas eu ganhava algumas. E era o suficiente para me fazer feliz e me sentir plena. Matheus era um típico romântico. Gostava muito de caminhar sem compromissos pelos lugares, principalmente nas ruas no fim da tarde. Divertíamos-nos andando a luz das lâmpadas em noites de verão.

       Ficávamos sentados no meio da rua. Às vezes comprávamos Pepsi e ficávamos ali, jogados. Bebíamos refrigerante e falávamos sobre o passado, sobre os planos do futuro e nos beijávamos. Quem passava perguntava se estávamos bem, ou se eu precisava de algo, porque era estranho alguém deitado no chão. Riamos e ele dizia que estava tudo sobre controle. Tudo Belezinha. A saudade apertou muito hoje. Odeio a morte. Porque ele?

Tempo, me ajude a conseguir superar isso.

Sofrendo de nostalgia, 

Clarissa.

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