Carta 4

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 Santa Catarina
10 de Setembro

Caro Tempo,
Estou irritada para caramba!
Hoje foi meu primeiro dia na biblioteca e foi uma droga!
Tudo deu errado!

         Maldito psiquiatra!
Quer que eu explique melhor?
Aqui vai. Lá estava eu, tranquila retirando alguns livros da prateleira para começar a limpeza. A biblioteca é bem menor do que imaginei. Ela é um quarto na verdade, do mesmo tamanho que o meu. A diferença é que tem janelas  cercada completamente por prateleiras e mais prateleiras empoeiradas e com traças se alimentando dos livros esquecidos pelo tempo, no caso, você. 

          Fiquei muito puta com isso, pois onde já se viu deixar os livros chegar a esse ponto? Não deixam os malucos ler para deixar tudo apodrecer? Não vejo lógica nisso. Mas até aí,  tudo bem. Decidi limpar por letra. Enumerei as prateleiras com letras e números em ordem. Tem um total de doze estantes e cada uma com oito prateleiras. Cada prateleira cabe em média oitenta livros de porte médio. 

        Eu não queria limpar nem nada, mas fiquei mal vendo que tem tanto potencial ali desperdiçado. Então não sei da onde, mas surgiu uma adrenalina por querer aquele lugar agradável. Afinal, uma biblioteca deveria ser o lugar que qualquer pessoa gostaria de ficar. Transmitir aquela sensação de sossego e sabedoria. Mas o que senti ao entrar ali foi vontade de sair correndo. 

          Me deram vários panos e apenas dois produtos de limpeza. Um de chão e outro para ferrugem. Sim, as estantes são de ferro ou algo assim do gênero. Tinha cinco secretarias circulares, parecia algo pensando em atividades de grupo. Limpei as mesas e a mesa principal que seria da bibliotecária. Se tivesse uma é claro. Atrás dessa mesa, tinha outro armário com fixários velhos, eu tirei tudo dali para limpar também. Tinha muita traça e barata. Matei tudo que pude, mas acho que terei mais trabalho ainda amanhã. Pois espalhei veneno e terei que limpar a bagunça que vai ficar com os cadáveres desses insetos tão odiados. 

       Era bem nojento, mas não foi isso a causa do meu ódio. Deixei as mesas e o armário limpo, para poder colocar ali, os livros limpos conforme limpo esses e as prateleiras. Quando estava na metade da primeira prateleira, meu psiquiatra entrou na biblioteca com alguns malucos.
Sim, ele fez uma reunião em grupo ali, fingindo que não sabia da minha existência e como se ele viesse sempre ali. Ele tentou me provocar, dizendo que a pessoa responsável dali realmente não limpava bem e que era uma pena, pois haviam dado chances demais. Os pacientes nem entendiam o que ele falava, com exceção de um novato. Ele estava para baixo, sério e parecia incomodado com alguma coisa. 

       Então ele pediu para que me juntasse a eles e recusei. Tentei não ser rude, porque ele tem uma implicância do tamanho do universo comigo. Mas ele se sentiu ofendido. Tentou me provocar, mas eu estava tranquila demais para ele me tirar à paz. 

       Insatisfeito, foi até mim e me pegou pelo braço. Como se eu fosse a mulherzinha dele! Babaca. E me arrastou até a mesa. Soltei-me e disse para ele ir embora, que eu não queria problemas. Ele riu. Disse que os problemas me seguem tal como a minha sombra. E falou que ali tinha muitas aranhas, para uma paciente que se tremia na cadeira. Alguma coisa parecia possuir a mulher, pois ela levantou e corria pela sala. Foi até onde eu estava antes e começou a derrubar todos os livros da mesa da bibliotecária. Ou seja, todos os livros que eu já tinham  limpo, se misturaram com os restos de barata e coco de traça.

         Eu surtei. E fiz a maior merda. Eu peguei o babaca do médico e dei um soco na cara dele. Ele apertou um botão de emergência debaixo da mesa, que eu nem sabia que existia. Apesar de ser obvio devido o lugar onde estava, um manicômio. Não tardou para a sala se encher de seguranças para dominar o caos. Os pacientes começaram a se agredir, outro urinou nas calças, e a doida corria chorando, enquanto outro rapaz comia o vômito de outro maluco que vomitava por todo o chão. 

         Eu levei uma injeção do psiquiatra e desmaiei. Acordei no castigo e estou aqui, escrevendo isso. Essa baboseira toda é culpa dele. Eu estava na minha, fazendo minha tarefa. Eu odeio esse cara! 

      Parece que as coisas não vão mudar por aqui tão cedo. Faz pouco tempo que escrevo essas cartas, mas de algum jeito sinto que estão me ajudando muito mais do que os remédios e as sessões com psicóloga, psiquiatra, enfermeiras e em grupo. Sinto que tudo não passa de uma fraude.

        Fecho os olhos um instante...
       Estou afundando....
Mergulhei no mar bravo. Sinto o choque térmico do meu corpo quente com a água gelada. A espuma embaça minha visão e por mais que eu gostaria não consigo ver outra onda se formar. Ela vai quebrar em cima de mim antes de conseguir emergir....

       E me afoguei. Estou engolindo água salgada da praia e as ondas brutas estão me puxando mais e mais para o meio delas. Estou me debatendo. Não consigo sentir o chão. Acho que já fui levada para onde não tem pé. Que droga! 

        Pense....
Então uma mão amiga que puxa. E eu subo novamente a superfície. Estou cuspindo água salgada. Ele esta com o meu braço sobre seus ombros largos. E finalmente consigo ver uma imagem distorcida do céu. 

       Minha nossa! Como ele é azul. Azul claro, límpido, sem nuvens. Eu adoro azul! Grito para ele. Ele ri, diz que tomei um caldo daqueles. Chama-me de maluquinha e sua risada me anima. Foi assim o nosso segundo encontro. Eu e Matheus. Em meio à praia vazia, de manhazinha, na Costa do Moçambique...

(Sim, eu tive um momento de flashback). 

       Sinto falta do mar. Sinto falta do Matheus e do toque dele na minha pele. Do seu riso fácil e do seu bronze. Se fechar os olhos por alguns instantes, é como se conseguisse ouvir o som do mar. Das ondas. Consigo sentir nosso beijo naquele momento. Antes de chegar à areia da praia. Era um beijo quente e salgado. Mas explodiu meu coração de amor.

Com saudades do mar,
Clarissa.

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