SEGUNDA PARTE-CAPÍTULO XIII

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No momento em que Levine entrava em casa, muito satisfeito, ouviu um retinir de campainhas para os lados da entrada principal.
"É alguém que chega da estação", pensou ele, "é a hora do comboio de Moscovo Quem será? Nicolau? Pois não me disse ele que em lugar de ir para as águas talvez viesse para minha casa?" Por instantes sentiu se contrariado, receoso de que o aparecimento do irmão viesse estragar aquela sua boa disposição primaveril, mas, reprimindo incontinente esse sentimento egoísta, pôs-se a desejar, de todo o seu coração, com enternecida alegria, que o visitante que a campainha anunciava fosse o seu irmão Nicolau. Esporeou o cavalo e ao contornar uma moita de acácias divisou dentro de um trenó de aluguer um senhor de pelica, que não reconheceu logo "Oxalá seja alguém com quem se possa conversar?"
- Oh, mas é o mais bem-vindo dos hóspedes! - exclamou, daí a momentos, erguendo os braços para o céu, pois acabava de reconhecer Stepane Arkadievitch - Que prazer tenho em ver-te!
Para si mesmo observou "Por ele hei-de saber, naturalmente, se ela já está casada." E reconheceu que naquele esplendoroso dia de Primavera nem a lembrança de Kitty o fazia sofrer.
- Confessa que contavas comigo - disse Stepane Arkadievitch, apeando-se do trenó, todo ele resplandecente de alegria e de saúde, apesar de três salpicos de lama que se lhe tinham grudado no nariz, nas faces, nas sobrancelhas - Aqui me tens primeiro para te ver, segundo, para caçar, terceiro, para vender o meu bosque de Ierguchovo.
- Óptimo! E que te parece esta Primavera? Como pudestes chegar até aqui de trenó?
- De carruagem ainda era mais duro, Constantino Dimitrievitch - replicou o cocheiro, velho conhecido de Levine.
- Pois é o que te digo, estou contente por te ver - continuou este, com um largo sorriso infantil.
Conduziu o amigo ao quarto de hóspedes, onde logo lhe levaram a bagagem uma maleta, uma espingarda, no seu estojo, e uma caixa de charutos. Deixando, pois, Stepane Arkadievitch para que se arranjasse à vontade, tratou de descer ao escritório para dar ordens ao administrador a respeito dos trevos e dos trabalhos da quinta. Mas Agáfia Mikailovna, que gostava de manter os bons créditos da casa, deteve-o no vestíbulo e pediu-lhe ordens para o jantar.
- Faça o que quiser, mas despache-se - respondeu ele, entrando no escritório.
Quando voltou, Oblonski, lavado, penteado, radioso, saía do seu quarto Subiram juntos ao 1o andar.
- Que contente estou por me encontrar outra vez contigo! Vou, finalmente, ser iniciado nos mistérios da tua existência Falando sério, tenho-te inveja. Que casa encantadora! Como tudo aqui é claro e alegre!
- declarou Stepane Arkadievitch, esquecido de que a Primavera não durava sempre e que durante o ano havia também dias escuros - E a tua velha criada só por si paga a pena da viagem. Claro que eu por mim preferia uma mocinha boa, mas a simpática velha combina bem com o teu estilo severo e monástico.
Entre outras novidades cheias de interesse, Stepane Arkadievitch preveniu Levine de que Sérgio Ivanovitch pensava visitá-lo durante o Verão. Não disse palavra nem de Kitty nem dos Tcherbatski, limitando-se a transmitir-lhe lembranças da mulher. Levine não pôde deixar de apreciar a delicadeza que isso significava. Aliás, a visita de Stepane Arkadievitch agradava-lhe em cheio. como sempre lhe acontecia, durante os períodos de solidão ia armazenando no seu retiro muitas ideias e impressões que lhe não era possível comunicar às pessoas que o rodeavam. Ei-lo, pois, a despejar em cima do amigo a exaltação que aquela quadra do ano lhe inspirava, os seus planos e os seus dissabores de lavrador, os pensamentos que lhe tinham vindo à mente, as observações que tinha a fazer aos livros que lera e sobretudo a ideia fundamental da obra que imaginava, ideia que constituía, sem que ele desse por liso, uma crítica a todos os tratados de economia rural Stepane Arkadievitch, sempre amável e pronto a apreender tudo no ar, mostrou-se desta vez mais encantador do que nunca. Levine julgou notar, mesmo, na sua atitude para com ele um tom novo de cordialidade diferente, que não deixava de o lisonjear.
Os esforços conjugados de Agáfia Mikaloivna e do cozinheiro para melhorarem o rancho tiveram este resultado inesperado os dois amigos, mortos de fome, atiraram se aos aperitivos, comeram pão, manteiga, cogumelos em conserva, meia galinha fumada, e Levine mandou servir a sopa sem esperar pelos empadões com que o cozinheiro esperava deslumbrar o hóspede Aliás, Stepane Arkadievitch, muito habituado a banquetes, não se cansou de achar tudo de primeira ordem
- o ratafia, o pão, a manteiga, a galinha defumada, os cogumelos, a sopa de urtigas, o frango em molho branco, o vinho branco da Criméia, tudo o deslumbrou, tudo o encantou.
- Óptimo, óptimo! - exclamava ele enquanto acendia, depois do assado, um grosso charuto. - Tenho a impressão de que realmente aportei a uma bela enseada depois da algazarra e dos solavancos da movimentada travessia - Pelo que vejo, és de opinião que o elemento representado pelo operário deve entrar em linha de conta na escola da cultura a fazer. Eu sou leigo nestes assuntos, mas quer-me parecer que essa teoria e a sua respectiva aplicação virão a ter influência sobre o próprio operário.
- Sim, mas espera eu não estou a falar de economia política, estou a falar da economia rural, enquanto ciência. Da mesma maneira que para as ciências naturais é preciso estudar os dados fundamentais, os fenômenos e o próprio operário, do ponto de vista econômico, etnográfico.
Entretanto Agáfia Mikailovna ia trazendo os doces de fruta.
- Felicito-a, Agáfia Fiodorovna - disse-lhe Stepane Arkadievitch, beijando- lhe as pontas dos dedos. - Que conservas, que ratafia! Olha lá, Kóstia, não serão horas de irmos?
Levine relanceou o olhar através da janela, para o Sol que declinava por detrás das copas das árvores ainda desnudadas
- Sim, acho que sim Kuzma, manda atrelar o carro! E lançou-se escadas abaixo, correndo. Stepane Arkadievitch seguiu atrás e foi ele próprio, com todas as cautelas, retirar a espingarda do estojo de madeira laçada, metido numa bainha de pano era uma arma cara e do último modelo. Contando com uma boa gorjeta, Kuzma seguia o de perto, e Stepane Arkadievitch deixou que ele o ajudasse a calçar as meias e as botas.
- A propósito, Kóstia, deve vir aí um tal Riabinine, um homem de negócios. Queres fazer o favor de dizer que o recebam e o façam esperar.
- É ao Riabinine que vais vender o teu bosque? - É. Conhece-lo, porventura?
- Claro. Tive negócios com ele "positiva e definitivamente".
Stepane Arkadievitch pôs-se a rir "Positiva e definitivamente" eram expressões favoritas desse indivíduo.
- Sim, tem uma maneira de falar bem divertida. Ah! Adivinhas para onde o teu dono vai - acrescentou, acariciando Laska, que estava aos pulos, em volta de Levine, e lhe lambia ora as mãos ora as botas e a espingarda.
Saíram. O carro esperava-os à porta.
- Mandei preparar o carro, embora seja muito perto daqui, mas, se preferes, podemos ir a pé.
- Gostaria mais de ir de carro. - volveu Stepane Arkadievitch, sentando se lá dentro, envolveu as pernas numa manta mosqueada e acendeu um charuto - Como podes viver sem fumar? - continuou ele - O charuto é a volúpia das volúpias. Ah, que vidinha boa a tua! Como eu te invejo!
- Quem te impede de fazer o mesmo?
- Não é a mesma coisa. Tu és um homem feliz, possuis tudo o que te dá prazer gostas de cavalos, de cães, da caça, da cultura, e tens tudo isto aqui à mão. És um homem feliz?
- Precisamente porque me contento com o que tenho e não ambiciono o que não tenho - replicou Levine, que pensava em Kitty.
Stepane Arkadievitch compreendeu a alusão, mas contentou-se em fitá-lo sem dizer palavra. Por mais reconhecido que se sentisse, para com Oblonski, pelo facto de este ter adivinhado, com o seu tacto habitual, quanto esse assunto lhe era doloroso, Levine teria, no entanto, gostado de saber o que se passava, mas não tinha coragem de abordar a questão.
- Bom, diz-me-la como vão as tuas coisas? - continuou, censurando se a si próprio por não pensar senão no que o preocupava. Nos olhos de Stepane Arkadievitch prepassou uma chama.
- Tu não admites que uma pessoa possa desejar guloseimas quando já tem a sua ração de pão. Na tua opinião é um crime, mas eu não admito que se possa viver sem amor - respondeu ele, tendo compreendido, à sua maneira, a pergunta de Levine - Não posso fazer outra coisa. Nasci assim. E para falar verdade, com isso é tão pequeno o prejuízo que damos aos outros e tão grande é
o prazer que nos proporcionamos.
- Haverá alguma coisa de novo? - inquiriu Levine.
- Há, sim, meu caro. Conheces o tipo das mulheres ossianescas essas mulheres que só em sonhos se vêem? Pois podes crer, essas mulheres existem por vezes em carne e osso e então são terríveis. A mulher, como tu a vês, é um tema inesgotável por mais que se estude, há sempre nela qualquer coisa de novo.
- Mais vale então não a estudar.
- Oh! Pelo contrário! Não sei quem foi o matemático que disse que o prazer estava em procurar a verdade, não em encontrá-la.
Levine ouvia calado, mas, por mais que fizesse, não conseguia perceber a alma do amigo, não conseguia compreender o prazer que ele tinha em estudos daquela espécie.

Ana Karênina - Liev TolstóiOnde histórias criam vida. Descubra agora