SEGUNDA PARTE-CAPÍTULO XV

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Stepane Arkadievitch subiu para o 1o andar, com o bolso cheio do dinheiro
correspondente a três meses que Riabinine lhe soubera fazer aceitar por conta. A venda estava feita, tinha o dinheiro na carteira, a caça fora boa sentia-se, portanto, com óptima disposição e era seu desejo rematar agradavelmente, com uma lauta ceia, aquele dia tão bem começado. Para isso precisava, fosse como fosse, distrair Levine, mas, por mais que este procurasse mostrar se amável e cordial, não conseguia desanuviar o espírito das suas ideias negras. A notícia de que Kitty não estava casada como que o embriagara, mas no fundo a sua embriaguez começava a desvanecer-se. Solteira e doente, doente de amor por aquele que a desprezara! Era quase uma injúria pessoal Vronski repelira-a, mas ela repelira Levine. Não teria Vronski o direito de o desprezar? Levine, porém, não reflectia sobre isso. Apenas sentia vagamente que em tudo aquilo havia qualquer coisa de insultuoso para ele, contudo, não estava zangado agora com o que o perturbara então, mas com o que presentemente se lhe deparava. Aquela absurda venda do bosque, o logro de que Oblonski fora vítima sob o seu próprio tecto, irritavam no p articularmente.
- Então, está tudo pronto? - perguntou, ao ver chegar Oblonski - Queres cear?
- Não digo que não O campo dá me um apetite de lobo. Mas por que não convidaste o Riabinine?
- Que vá para o diabo que o carregue!
- Caramba, como tu o tratas! Nem mesmo lhe estende te a mão, porquê?
- Porque também não a estendo ao meu criado, que vale cem vezes mais do que ele.
- Que ideias obsoletas! E que dizes da fusão das classes?
- Deixo isso para as pessoas a quem semelhante coisa é agradável, no que me diz respeito, dá me náuseas.
- Decididamente, não passas de um retrógrado.
- Para falar a verdade, nunca perguntei a mim próprio o que seria. Sou, muito simplesmente, Constantino Levine.
- Um Constantino Levine levado dos diabos - disse Oblonski, sorrindo.
- Tens razão E sabes por quê? Por causa dessa venda estúpida, desculpa o termo.
Stepane Arkadievitch assumiu uma expressão de inocência ultrajada.
- Bom - disse ele -, quando é que já aconteceu alguém vender alguma coisa, sem que lhe digam logo em seguida "Mas isso valia muito mais!" Infelizmente, nunca aparece quem pague esse bom preço antes de as coisas estarem vendidas. Não, estou persuadido de que não toleras esse pobre Riabinine.
- Talvez, e vou dizer te porquê. Podes tratar me de retrogrado ou de qualquer outro nome tão ridículo como esse, não posso deixar de deplorar o empobrecimento geral desta nobreza, à qual, apesar da fusão das classes, eu me sinto feliz por pertencer. Ainda se se tratasse de uma conseqüência das nossas prodigalidades, estava certo levar uma vida larga é privilegio dos nobres e só eles
o sabem fazer. Não me da engulhos ver os camponeses comprarem as nossas terras. Como o proprietário não faz nada, o camponês, que trabalha, toma o lugar dos ociosos. Está na ordem natural das coisas, e acho que deve ser assim. Mas o que me vexa é verificar que a nossa nobreza se está a deixar despojar por como é que hei de dizer sim, é isso mesmo, por inocência! Aqui é um lavrador polaco que compra por metade do preço, a uma dama que vive em Nice, uma propriedade magnífica. Acolá é um negociante que arrenda por um rublo a desiatina o que vale dez. Hoje és tu que, sem mais nem menos, das de presente a esse malandro trinta mil rublos.
- Então, na tua opinião, eu devia ter contado as árvores uma por uma?
- Isso mesmo. Se não as contaste, podes ter a certeza de que Riabinine as contou por ti. Os seus filhos terão com que viver e com que se instruir enquanto os teus, só Deus o sabe.
- Desculpa-me, mas acho esse cálculo mesquinho. Nós temos as nossas ocupações, eles têm as deles, e é muito compreensível que tirem partido disso. Em conclusão, o negócio está feito e não vale a pena falar mais no caso. Aí vêm ovos estrelados, o meu prato favorito. E Agáfia Mikailovna, assim o espero, vai trazer-nos daquela magnífica vodka.
Oblonski sentou se à mesa e pôs se a gracejar com Agáfia Mikailovna, dizendo lhe que havia muito não jantava nem ceava tão bem.
- Ao menos - disse ela - sempre tem uma palavra agradável a dizer, enquanto a Constantino Dimitrievitch podíamos lhe servir à vontade apenas uma côdea de pão que a comeria e se iria embora sem dizer palavra.
Por mais esforços que fizesse para se dominar, Levine continuava macambúzio e silencioso. Tinha na ponta da língua uma pergunta que não se atrevia a fazer, não sabendo como nem de que maneira formulá-la. Stepane Arkadievitch já tivera tempo de descer ao seu quarto, de fazer as suas abluções, de vestir uma camisa de noite plissada e de se deitar, enfim, e Levine ainda andava em volta dele, falando de coisas insignificantes, sem coragem para perguntar o que não lhe saía do pensamento.
- Que bem apresentado, não achas? - disse ele, desembrulhando um sabonete perfumado, uma atenção de Agáfia Mikailovna, de que Oblonski nem sequer se servira - Ora repara é uma autêntica obra de arte.
- É verdade, hoje tudo se está a aperfeiçoar. - aprovou Stepane Arkadievitch com um bocejo de felicidade. - Os teatros, por exemplo, e outros locais de divertimento - Aqui um novo bocejo - Por toda a parte já ha luz eléctrica.
- Sim, luz eléctrica - repetiu Levine. - A propósito, e Vronski, que é feito dele? - ousou, finalmente, pondo de lado o sabonete.
- Vronski - repetiu Stepane Arkadievitch, deixando subitamente de bocejar - Está em Sampetersburgo. Partiu pouco depois de ti e nunca mais voltou a Moscovo. Queres saber, Kóstia? - prosseguiu ele, encostando se à mesinha de cabeceira e apoiando nas mãos o seu belo rosto onde brilhavam, como duas estrelas, os seus olhos bondosos um pouco sonolentos - Vou dizer te a verdade. A culpa foi tua. Tiveste medo de um rival e repito te o que então te disse não sei qual de vocês dois teria mas probabilidades de êxito. Por que não te adiantaste? Eu não te disse, então.
E um bocejo lhe movimentou as maxilas, num esforço para não abrir a boca.
"Saberá ele, ou não, que pedi a mão de Kitty?", interrogava se Levine, fitando o "Sim, ha manha, há diplomacia na cara dele." E sentindo-se corar, mergulhou os olhos nos de Oblonski sem abrir a boca.
- Admitindo - continuou Stepane Arkadievitch - que ela se sentisse atraída por ele, não podia deixar de ser uma atracção superficial. A mãe é que se deixou seduzir pela aristocracia das maneiras do rapaz e pela brilhante posição que ele um dia virá a ocupar na sociedade.
Levine franziu as sobrancelhas. A injúria do repúdio trespassava -lhe de novo
o coração como uma ferida recente. Felizmente estava em sua casa e um homem em sua casa sente se sempre mais forte.
- Espera, espera. - exclamou ele, interrompendo Oblonski - Falas da sua procedência aristocrática. Podes dizer me em que consiste a aristocracia de Vronski ou de qualquer outra pessoa e em que essa aristocracia autoriza o desprezo que tiveram para comigo? Consideram no um aristocrata. Não sou da mesma opinião. Um homem cujo pai subiu na vida graças a miseráveis intrigas e cuja mãe teve aventuras sem conta. Não, isso não. Eu chamo aristocratas aos homens que como eu podem orgulhar se de ter atrás de si três ou quatro gerações de gente honesta, instruída, educada (não falo de dotes de espírito, isso é outra coisa), que, não tendo precisado de ninguém, nunca se rebaixaram diante de quem quer que fosse. Assim foram o meu pai e o meu avô. E conheço muitas famílias do mesmo tipo. Dás de mão beijada a Riabinine trinta mil rublos e achas mesquinho que eu conte as árvores das minhas florestas, mas ainda um dia hás de dispor de uma propriedade do Estado e de muito mais coisas e eu nada obterei. Isto é a razão por que trato de poupar a que herdei de meu pai e o que consegui amealhar com o meu trabalho. Nós é que somos os aristocratas e não esses que vivem à custa dos poderosos deste mundo e que se deixam comprar por pouca coisa.
- Mas a quem estás a atacar? Eu sou da tua opinião - respondeu com toda a sinceridade Stepane Arkadievitch, divertido com esta saída, mas desconfiado de que Levine o incluía também na categoria dos que se deixam comprar por pouca coisa - Não estas a ser justo para com Vronski, mas não é disso que se trata. Digo te com toda a franqueza devias vir comigo para Moscovo e...
- Não. Não sei se soubeste o que se passou. De resto, tanto faz, vou te dizer declarei me a Catarina Alexandrovna e ela brindou me com uma negativa que me torna a sua lembrança penosa e humilhante.
- Por quê? Que loucura!
- Não falemos mais nisso. E se me exaltei, peço te que me desculpes. Agora que falara, finalmente, voltava a sentir se bem disposto.
- Bom. - tornou ele, sorrindo e apertando a mão de Oblonski - Ficaste zangado comigo? Por favor, não te zangues, Stiva!
- Nunca pensei em zangar-me. Estou muito contente que nos tenhamos aberto um com o outro. Mas diz me uma coisa é boa a caça pela manhã? Achas que sim? Passarei bem sem dormir, e depois da caça irei directamente para a estação.
- De acordo.

Ana Karênina - Liev TolstóiOnde histórias criam vida. Descubra agora