Quando penetraram na isbá do mujique onde Levine costumava sempre deter se, já lá estava Veslovski. Sentado no meio da casa, agarrado a um banco com ambas as mãos, ria, com o seu riso contagioso, enquanto o irmão da dona da isbá, um soldado, lhe puxava pelas botas cobertas de lama, para arrancar lhas dos pés.
— Acabo de chegar. lis ont et é charmants (Nota 61). Imaginem que me deram de comer e de beber. E que pão! Magnífico! Délicieux! (Nota 62) Nunca bebi melhor vodka. E não quiseram que eu pagasse, por nada deste mundo. “Não te ofendas, faz se o que se pode!”
— Mas por que queria pagar? — resmungou o soldado que finalmente arrancara uma das botas, com a sua meia enegrecida de lodo.
— Só queriam obsequiá-lo, não é verdade? Não vendem vodka.
Apesar da imundície da isbá, cheia de pegadas das botas dos caçadores e das patas dos cães, cobertos de lodo escuro, que se lambiam, do cheiro a lama e a pólvora e da falta de garfos e de facas, os três amigos tomaram chá e cearam com aquela satisfação que só há quando se vai à caça. Depois, uma vez lavados, dirigiram se para o palheiro, bem varrido, onde os cocheiros lhes tinham preparado as camas.
Embora já tivesse escurecido, nenhum dos três tinha sono.
Depois de divagarem, contando coisas passadas, histórias de cães e outras proezas de caça, a conversa versou sobre um tema que a todos interessava. Veslovski estava encantado com tudo; com o cheiro de feno que enchia a quadra, com os cães deitados aos pés dos donos, com o carro, a um canto, que ele julgava partido, pois lhe tinham tirado a parte da frente. E como não cessasse de elogiar a hospitalidade aldeã, Oblonski achou por bem contrapor a esses prazeres campestres os factos de uma grande caçada em que tomara parte no ano anterior na província de Tver, em casa de um tal Maltus. Tratava se de um conhecido indivíduo que enriquecera com os caminhos de ferro. E pôs se a descrever os pântanos imensos que ele possuía e como cuidava dos seus dog- carts (Nota 63) e a tenda armada à beira de água para o almoço dos caçadores.
— Não compreendo como essa gente te não repugna — disse Levine, soerguendo se no seu monte de palha. — Bem sei que é muito agradável um almoço regado a Château Lajite, mas será possível que te não desgoste todo esse luxo? Toda essa gente arranja dinheiro como antigamente os nossos arrendatários da vodka e estão se nas tintas para o desprezo público, graças ao dinheiro mal ganho.
— Isso mesmo! — apoiou Vacienka Veslovski. —Tem toda a razão!É claro que o Oblonski toma parte nessas coisas por pura bonhomie (Nota
64), mas não falta quem diga: “O Oblonski vai...”
— Nada disso — replicou Stepane Arkadievitch, com um sorrisinho que não escapou a Levine. — Se vou a casa dele, sinceramente, é porque estou convencido de que essa maneira de ganhar dinheiro não é menos honrosa do que a de um lavrador ou a de um negociante. Todos fizeram fortuna graças ao seu trabalho e à sua inteligência.
— A que chamas tu trabalho? Chamas trabalho obter uma concessão e revendê-la?
— Naturalmente! A verdade é que se não existissem essas pessoas e outras semelhantes nem sequer teríamos caminhos de ferro.
— Mas esse trabalho não se pode comparar com o de um mujique que lavra a terra ou com o de um sábio que estuda.
— Está bem; mas nem por isso deixa de ser trabalho, pois essa actividade dá frutos: os caminhos de ferro. É claro que na tua opinião os caminhos de ferro são inúteis.
— Essa é outra questão. Estou disposto a reconhecer a sua utilidade. Mas todo
o lucro que não esteja em proporção com o trabalho realizado é desonroso.
— Quem é que determina essa proporção?
— Todo o lucro conseguido por processos desonrosos, com astúcia — teimava Levine, notando que não sabia delimitar com rigor a linha que separava o justo do injusto. — Por exemplo, os grandes lucros dos bancos. Essas fortunas feitas rapidamente são sempre escandalosas. Le roi est mort, vive le roi (Nota 65). Já não temos mais terras de lavoura, mas os caminhos de ferro e os bancos aí estão para os substituir.
— Talvez tudo isso seja verdade e além do mais, engenhoso... Krak, quieto! — gritou Stepane Arkadievitch ao cão, que se coçava e revolvia a palha. E prosseguiu, serena e paulatinamente, convencido da verdade do ponto de vista que sustentava: — Mas não definiste os limites entre o trabalho honroso e o trabalho desonroso. É desonroso que eu ganhe mais do que o chefe da minha repartição, embora ele conheça mais a fundo os assuntos?
— Não sei.
— Pois vou dizer to: que tu obtenhas pelo teu trabalho na propriedade cinco mil rublos, por exemplo, e que um camponês proprietário não ganhe mais do que cinqüenta, seja qual for o esforço que faz, é tão pouco honroso como eu ganhar mais do que o chefe da minha repartição e Maltus obter maiores lucros que um ferroviário. Na minha opinião, há uma hostilidade sem fundamento contra essa gente, e tudo por inveja...
— Não; isso é injusto — contraveio Veslovski. — Nisso não pode haver inveja; trata se de qualquer coisa pouco limpa.
— Perdoa — interrompeu Levine. — Dizes que é injusto que eu ganhe cinco mil rublos e o camponês apenas cinqüenta. Está certo. É injusto, confesso, mas...
— É certo, nós comemos, bebemos, vamos à caça e não trabalhamos; em compensação, o camponês passa a vida a trabalhar — observou Veslovski. Naturalmente era a primeira vez na sua vida que pensava em coisas semelhantes, por isso estava sendo sincero.
— Sim, confessas, mas não cederias as mas terras — tornou Oblonski, não sem malícia.
Desde que eram cunhados, uma hostilidade surda se filtrava nas relações dos dois amigos: cada um deles parecia convencido, lá no fundo, de organizar melhor a sua vida que o outro.
— Não o faço porque ninguém me pede que o faça, e, se o quisesse fazer, não teria a quem cedê-las nem poderia cedê-las — replicou Levine.
— Dá as a este camponês; não se negará a aceitá-las.
— E como havia de o fazer? Assinando um contrato de venda ou de doação? — Não sei, mas, se estás convencido de que cometes uma injustiça...
— Não estou nada convencido. Pelo contrário, desde que constituí família, tenho deveres para com ela e não me acho no direito de me despojar daquilo que é meu.
— Perdão, se estás convencido de que essa desigualdade é uma injustiça, deves proceder de acordo com isso.
— É o que faço, fazendo o possível para a não aumentar. — Que paradoxo!
— Sim, isso aí... Cheira a sofisma! — observou Veslovski. — Eh, aí está o patrão! — exclamou, ao ver o dono da isbá, que abria a porta, fazendo chiar os gonzos. — Quê? Pois ainda não estás deitado?
— Dormindo, eu? Pensava que os senhores estavam a dormir, mas como os ouvi falar... Venho buscar um garavanço. Os cães não me irão morder? — acrescentou, avançando, prudentemente, de pés descalços.
— Onde vais tu dormir?
— Esta noite dormiremos no campo...
— Que noite! — exclamou Veslovski, ao descobrir, pela frincha da porta entreaberta, a luz esvaída do crepúsculo, um ângulo da casa e o charabã desatrelado... Mas de onde vêm estas vozes de mulher? Não cantam nada mal, não acham?
— São as raparigas aqui do lado.
— Vamos dar uma volta... De qualquer forma, não conseguimos dormir. Anda, Oblonski.
— Se pudéssemos ir e ao mesmo tempo ficar deitados — respondeu este, espreguiçando se. — Está se tão bem deitado!
— Então vou sozinho — exclamou Veslovski, levantando se, decidido, e calçando as botas. — Até logo, senhores! Se me divertir, venho chamá-los. Convidaram me para caçar e eu não vou esquecê-los por minha vez.
— Não é um rapaz simpático? — exclamou Oblonski, quando Vacienka saiu e
o camponês fechou a. porta do palheiro.
— É, é muito simpático — confirmou Levine, que continuava z pensar na conversa de há instantes.
Afigurava se lhe ter exprimido as suas ideias e os seus sentimentos o mais claramente que sabia e, no entanto, embora os outros fossem homens inteligentes e sinceros, tinham lhe respondido em uníssono que se contentava com sofismas. Eis o que o desconcertara.
— Pois é assim, meu amigo: Uma de duas: ou concordamos em que a sociedade actual está bem organizada, e temos de defender os nossos direitos, ou então reconhecemos que estamos a gozar privilégios injustos, esse o meu caso, e vá de aproveitá-los com satisfação.
— Não; se sentisses a injustiça que isso pressupõe, não poderias aproveitar te dos seus benefícios. Eu, pelo menos, não o poderia fazer. Para mim, o principal é não me sentir culpado.
— E se fôssemos passear também? — propôs Stepane Arkadievitch, cansado, ao que parecia, daquele esforço mental. — Seja como for, não conseguimos dormir. Anda, vem cá!
Levine não respondeu: pensava. Pelo visto, achavam os seus actos em contradição com o sentimento que ele tinha da justiça. “Será possível”, dizia de si para consigo, “que uma pessoa só possa ser justa de uma maneira puramente negativa?”
— Que forte este cheiro a palha fresca! — disse Stepane Arkadievitch, soerguendo se. — Não consigo dormir por nada deste mundo. Quer me parecer que o Vacienka está a fazer das suas. Não o ouves rir? Vem cá, vamos!
— Não! Eu não vou — tornou lhe Levine.
— Porventura, por princípio também? — inquiriu Stepane Arkadievitch, sorrindo, enquanto procurava o gorro na escuridão.
— Não é por princípio, mas que vou eu lá fazer?
— Sempre te digo — observou Oblonski — que estás a arranjar uma situação perigosa. — Entretanto levantara se e encontrara o gorro.
— Por quê?
— Julgas que não me dei conta da posição em que te colocaste perante a tua mulher? Ouvi dizer que entre vocês é um problema de alta importância saíres alguns dias de casa. Isso está certo quando se trata de um idílio, mas não pode durar toda a vida. Um homem deve ser independente; tem os seus interesses próprios. Temos de ser varonis — concluiu Oblonski, abrindo a porta.
— Queres dizer que devo namorar as criadas? — perguntou Levine.
— Por que não, se nos dá prazer? Ça ne tire fai a consequence (Nota 66). À minha mulher, isso em nada a prejudica. E a mim diverte me. O importante é guardar respeito ao santuário familiar. Que ali nada aconteça! Mas não devemos ficar de mãos atadas.
— Talvez tenhas razão — respondeu Levine, secamente, voltando- se para o outro lado. — Temos de nos levantar cedo. Não acordarei ninguém e sairei logo que amanheça.
— Messieurs, venez vite! (Nota 67) — exclamou Vacienka, de volta ao palheiro. — Charmante! Fui eu quem a descobriu. Charmante (Nota 68), uma autêntica Gretchen (Nota 69). Já estamos amigos. Só lhes digo que é encantadora — perorava ele num tom que dava a entender que aquela encantadora jovem fora criada e posta neste mundo precisamente para ele.
Levine fingiu que dormia, enquanto Oblonski enfiava as botas e acendia um cigarro. Ouviu os dois amigos afastarem se, mas por muito tempo não pode dormir. Depois ouviu os cavalos que comiam a palha, o dono da casa que saía com o filho mais velho a passar a noite no campo, o soldado que se aninhava para dormir com o sobrinho, do outro lado do palheiro, o filho mais novo da irmã, e o pequeno que contava, na sua vozinha fina, a impressão que lhe tinham causado os cães, terríveis? enormes. E como o garoto lhe perguntasse a quem iriam fazer mal aqueles malditos cães, o tio contou lhe que no dia seguinte, pela manhã, os caçadores seguiriam para o pântano, onde disparariam as suas espingardas. Depois, farto das perguntas da criança, disse lhe, ameaçando a: “Dorme. Vaska, dorme; se não, vais ver o que te acontece.” E ele próprio não tardou a ressonar também. Entretanto tudo ficou em silêncio, ouvindo se apenas o mastigar dos cavalos e o grasnar de uma galinhola.
“E esta”, continuava a repetir Levine com os seus botões, “não poderá uma pessoa realmente ser justa senão de maneira negativa? No fim de contas, nada posso fazer, a culpa não é minha.” E pôs se a pensar no dia seguinte.
“Amanhã, assim que nasça o Sol, levantar-me-ei e procurarei não me excitar. O pântano está cheio de galinholas e de narcejas. E quando voltar, encontrarei uma palavrinha de Kitty... Talvez Stiva tenha razão. Não procedo para com ela como um homem, tornei me muito fraco... Mas que havemos de fazer? Isto também é “negativo”?”
Entressonhos ouviu o riso e o alegre colóquio dos companheiros, de regresso ao palheiro. Abriu os olhos por um momento: a Lua subira no horizonte e junto à porta aberta, vivamente iluminada, os dois conversavam. Oblonski falava da louçania da rapariga, comparando-a a uma avelã recém descascada, e Veslovski, repetindo qualquer coisa que, sem dúvida, lhe dissera o mujique, ria com o seu riso contagioso.
— Arranja te como puderes para ficares com uma para ti.
— Amanhã de madrugada, senhores! — resmungou Levine, e ficou-se a dormir.
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Ana Karênina - Liev Tolstói
RomanceEste é o maior romance adúltero da literatura universal. Ana, uma mulher casada, vive uma paixão proibida com Vronski, seu amante, que na verdade é um canalha. Assim começa a entrar, cada vez mais, em um abismo de mentiras e destruição. Tolstoi cons...