SEGUNDA PARTE-CAPÍTULO XX

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O aguaceiro não durou muito e quando Vronski chegou, ao trote de um cavalo de tiro, arrastando atrás de si os outros cavalos, galopando a toda a brida, pela lama fora, já o Sol, de novo no firmamento, fazia cintilar, dos dois lados da larga rua, os telhados das moradias, escorrendo água, e a folhagem encharcada das velhas tílias que iam deixando cair gotas alegres. Vronski abençoava a chuva: que lhe importava agora o mau estado do campo de corridas, quando era certo que, graças àquele aguaceiro, iria encontrar Ana em casa e muito provavelmente só, visto -o marido, recém-chegado das termas, ainda se não ter instalado no campo.
Para não chamar a atenção, Vronski, como de costume, apeou-se um pouco antes da ponte, e seguiu a pé até à residência dos Karenines. Em vez de tocar a campainha da porta principal, deu a volta pelo portão de serviço.
- O patrão já chegou? - perguntou ao jardineiro.
- Ainda não, mas a senhora está em casa. Faça o favor de tocar a campainha da porta principal, que lha abrem.
- Não, prefiro entrar pelo jardim.
Certo de que a iria encontrar só, queria fazer-lhe uma surpresa: como não lhe prometera visitá-la nesse dia, ela não o esperaria, visto ser dia de corridas. Levantou, pois, a espada, para não fazer ruído, e enveredou, cauteloso, pela álea, coberta de areia e orlada de flores, que conduzia ao terraço por onde a casa comunicava, desse lado, com o jardim. Afastando do espírito as preocupações que o tinham assaltado no caminho, apenas pensava na felicidade de a ver, não tardaria muito, em carne e osso e não mais em imaginação. Já ia a subir o mais suavemente que lhe era possível a rampa do terraço quando se lembrou do que sempre esquecia e que no fim de contas constituía o ponto mais doloroso das suas relações com Ana: a presença do filho dela, dessa criança de olhar inquisidor e hostil, assim lhe parecia.
A criança era o principal obstáculo às entrevistas dos dois. Nunca diante dela ousava pronunciar uma palavra que não pudesse ser ouvida por toda a gente. Nenhuma alusão susceptível de levantar suspeitas lhe era permitida. Entre os dois tinha se estabelecido uma espécie de aliança muda ludibriar a criança era para eles como proceder mal um para com o outro. Diante dela falavam, pois, como se fossem apenas dois amigo.s Apesar de todas estas precauções, a cada passo Vronski encontrava fixado nele o olhar perplexo e perscrutador do rapazinho. Ora carinhoso, em certos momentos, ora frio e sombrio, noutros, dir-se-ia que Sérgio percebia instintivamente existir entre aquele homem e sua mãe um laço sério cujo significado não compreendia.
Efectivamente, o pobre pequeno não conseguia saber como comportar se para com aquele senhor, graças à finura da intuição própria das crianças, adivinhara que, conquanto nunca falassem dele, o pai, a preceptora, a criada, experimentavam por Vronski repulsa um pouco receosa, enquanto a mãe o tratava como um amigo muito querido "Que significa isto? Quem é ele? Devo gostar dele? Se nada compreendo de tudo isto, é porque, sem dúvida alguma, ou sou mau ou sou estúpido", pensava a criança. Daí a sua timidez, o seu olhar perscrutador e um tanto desconfiado, essa mobilidade de atitude que tanto embaraçava Vronski. A presença daquele serzinho provocava-lhe, invariavelmente, sem causa justificável, essa estranha náusea que ultimamente o perseguia. Essa náusea fazia deles - tanto de Ana como de Vronski - uma espécie de navegantes a quem a bússola mostra que seguem à deriva, embora incapazes de deter o curso da embarcação. Reconhecerem semelhantes erros de rumo era o mesmo que verificarem estarem perdidos. Tal qual como a bússola ao navegante, aquela criança de olhar cândido tornava-lhes evidente o afastamento em que estavam da norma que por de mais conheciam, conquanto não quisessem submeter se a ela.
Nesse dia, porém, Ana estava completamente só. Aguardava no terraço o regresso do filho, surpreendido pela chuva no seu passeio. Mandara ao encontro dele um criado e uma criada de quarto. Com um vestido branco guarnecido de largas rendas, sentada a um canto, escondida atrás de umas plantas, não ouvira Vronski aproximar-se. A cabeça descaída, apoiava a fronte no metal frio de um regador esquecido em cima da balaustrada, que segurava com as duas mãos cheias de anéis bem conhecidos de Alexei. A beleza daquela cabeça de cabelos negros anelados, daquele pescoço, daqueles braços, de toda ela, era sempre para ele motivo de nova surpresa. Parou e contemplou-a num êxtase. Instintivamente Ana sentiu que ele se aproximava e ainda Vronski não dera mais um passo já ela repelia de si o regador, voltando para fie o rosto ardente.
- Que tem? Está doente? - perguntou-lhe Vronski em francês, aproximando-se dela. Teria desejado correr, mas, receoso de que o vissem, relanceou um olhar à porta do terraço, olhar que o fez corar como sempre o fazia corar tudo que lhe lembrasse que era obrigado a dissimular e a vigiar-se.
- Não, estou bem - respondeu ela, levantando-se e apertando com firmeza a mão que ele lhe estendia. - Não te esperava.
- Meu Deus, que mãos tão frias!
- Assustaste me, estou só e espero o Seriocha, que foi passear. Entrarão por este lado.
Procurava mostrar-se serena, mas os lábios tremiam-lhe.
- Desculpe me ter vindo, mas não podia passar o dia inteiro sem a ver - continuou ele em francês, o que lhe permitia, para evitar um "tu" perigoso, recorrer ao "vós", demasiado cerimonioso em russo. - Desculpar-te quando a tua visita me faz tão feliz!
- Mas está doente ou sofre por qualquer coisa - continuou ele, inclinando- se para ela, sem lhe largar a mão - Em que estava a pensar?
- Sempre na mesma coisa - respondeu ela, sorrindo. Falava verdade. A qualquer momento que a tivessem interrogado, teria podido dar sempre a mesma resposta, pois a verdade é que não pensava noutra coisa senão na sua felicidade e na sua desventura. No momento em que ele aparecera, perguntava ela a si mesma por que é que outras, Betsy, por exemplo, cuja ligação com Tuchkevitch, muito bem dissimulada, conhecia perfeitamente, tomavam tão à ligeira o que a ela tanto fazia sofrer. Naquele dia essa ideia atormentava-a particularmente por certas razões. Interrogou Vronski sobre as corridas. Ao responder-lhe, percebeu que Ana estava agitada e, tentando distraí-la, pôs-se a contar-lhe, com a maior naturalidade, alguns dos pormenores dos preparativos para as provas.
"Devo ou não dizer-lhe", pensava Ana, mirando os olhos límpidos e caridosos de Vronski "Está tão feliz, tão preocupado com as corridas, que não poderá compreender as coisas como são, não poderá compreender o que este facto significa para nós."
- Mas, afinal não me disse em que estava a pensar quando entrei.
- tornou ele, bruscamente, interrompendo o que dizia - Diga-me, por favor!
Ana não respondeu. Inclinando ligeiramente a cabeça, olhava para Vronski com uma expressão interrogativa nos olhos brilhantes e de grandes pestanas. A mão, que brincava com uma folha arrancada, tremia- lhe Vronski notou o e no seu rosto pintou-se aquela submissão e aquela fidelidade de escravo que a subjugavam.
- Vejo que sucedeu qualquer coisa. Poderei eu porventura sentir-me sossegado, um momento que seja, sabendo que está a sofrer uma dor de que eu não compartilho? Fale, pelo amor de Deus - insistiu, numa súplica.
"Não lhe perdoaria se não compreendesse toda a importância do que tenho a dizer lhe. É melhor não lho dizer. Para que hei-de eu fazer essa prova?", pensava Ana, que continuava de olhos fitos nele e se dava conta de que a mão cada vez lhe tremia mais.
- Pelo amor de Deus! - exclamou ele, pegando-lhe na mão. - Devo dizer-lhe? - Diga, diga
- Estou grávida - disse Ana, lenta e murmuradamente. A folha que tinha entre os dedos ainda tremeu mais, mas não desprendia dele os olhos na esperança de lhe ler no rosto como receberia a notícia. Vronski empalideceu, quis dizer qualquer coisa, mas conteve-se, baixou a cabeça e deixou cair a mão "Sim, compreendeu todo o significado deste acontecimento", pensou Ana, e apertou lhe a mão, reconhecida. Enganava-se, contudo, pensando que Vronski atribuía ao facto o mesmo significado que ela, mulher que era. Esta notícia principiara por despertar nele, mil vezes mais forte, o sentimento de desgosto que sentia, embora, ao mesmo tempo, compreendesse que chegara, finalmente, a crise que tanto desejava. Era impossível continuar a encobrir os factos ao marido de Ana e tornava-se indispensável acabar quanto antes, de qualquer modo, aquela situação odiosa. Aliás, a sua agitação física comunicara-se- lhe. Lançou um olhar cheio de enternecimento e de submissão, beijou lhe a mão, levantou-se e pôs se a andar de um lado para o outro, no terraço, sem dizer palavra.
- Nenhum de nós, nem a Ana nem eu, encarámos nunca esta situação como uma brincadeira, qualquer coisa sem importância. Agora o nosso destino está decidido - articulou, aproximando se dela, resoluto
- É preciso, dê por onde der, acabarmos com esta mentira em que vivemos - acrescentou, lançando à sua roda um olhar circunspecto.
- Acabar? Mas como, Alexei? - interrogou ela, em voz suave. Sentia-se tranqüilizada e no rosto transpareceu-lhe um sorriso enternecido.
- Tens de abandonar o teu marido para unirmos as nossas vidas.
- Já o estão mesmo sem isso - replicou Ana, numa voz quase imperceptível.
- Sim, mas de todo, de todo.
- Como, Alexei? Diz me como! - tornou a perguntar, sorrindo com tristeza e certa ironia, revendo a situação insolúvel - Haverá acaso alguma saída para nós? Não estou eu casada?
- Todas as situações têm uma saída. É preciso decidirmo-nos - teimou Vronski - Seja o que for, sempre será melhor que viver como vivemos. Bem vejo como sofres por tudo, pela sociedade, pelo teu filho, pelo teu marido.
- Oh, por causa do meu marido, não? - replicou Ana, com um sorriso cândido -Não penso nele. Não existe para mim.
- Não estás a ser sincera. Conheço-te bem. Também sofres por causa dele.
- Ele nada sabe - disse Ana, e de súbito um grande rubor lhe inundou a face, a fronte, o colo, e nos olhos afloraram-lhe lágrimas de vergonha - Não falemos mais dele.

Ana Karênina - Liev TolstóiOnde histórias criam vida. Descubra agora