- A propósito - continuou Sérgio -, estava precisamente a pensar em ti: pelo que vejo, a dar ouvidos àquele médico, que me não parece nada tolo, passam-se coisas incríveis na tua região. E isso leva me a repetir-te o que já te disse fazes mal em te manteres afastado e em não assistires às reuniões do zemstvo. Se as pessoas da nossa classe se desinteressam disso, haveria uma desordem de todos os diabos! Para onde vai o nosso dinheiro? Nós é que pagamos e eles trabalham a soldo Não há escolas nem farmácias, nem enfermeiras nem parteiras, nada.
- Que queres tu que eu faça? - replicou, contrariado, Constantino Levine - Fiz o possível por me interessar por tudo isso, mas está além das minhas possibilidades.
- Ora aí está uma coisa que me custa a admitir Vejamos, quais são as causas da tua abstenção! Indiferença? Não posso acreditar Incapacidade? Ainda menos Apatia? Talvez.
- Nada disso - replicou Constantino - Convenci me, muito simplesmente, de que não conseguiria nada.
Prestava pouca atenção a Sérgio. Um ponto negro, que se agitava lá adiante, nos campos lavrados do outro lado do curso de água, chamava-lhe a atenção, não seria o administrador a cavalo?
- Por quê? Por quê? - insistia Sérgio Ivanovitch - Desistes muito facilmente. Não terás amor-próprio?
- Que vem aqui fazer o amor-próprio? - retorquiu Constantino, fendo pelas palavras do irmão - Se na Universidade me tivessem considerado incapaz de compreender tão bem como os meus camaradas o cálculo integral, teria apelado para o meu amor próprio. Mas, neste caso, temos de principiar por saber se este gênero de actividade exige capacidades especiais e se é um gênero de trabalho muito importante.
- Achas então que não é importante? - exclamou Sérgio, ofendido pelo facto de ouvir o irmão tratar com tanta ligeireza coisas que ele muito prezava, que ele considerava de grande importância, e além disso vexado por verificar que Constantino não prestava grande atenção às suas palavras.
- É um facto, que hei-de eu fazer? Tudo isso me deixa indiferente
- replicou Constantino, que acabava de convencer se de que o ponto preto no horizonte era, de facto, o administrador, que naquele momento dispensava os trabalhadores, pois estes recolhiam as alfaias "Já terão acabado de arar!", pensava ele.- Isso, meu caro, não - disse Sérgio, e o seu belo rosto inteligente ensombrou se - Há limites para tudo. Compreendo perfeitamente que se deteste a prosápia e a mentira, sei muitíssimo bem que a originalidade é uma virtude. Mas o que acabas de dizer não tem sentido. Como podes tu achar que não é importante que essa gente que dizes estimar "Nunca disse semelhante coisa", pensou Constantino Levine - morra abandonada! As parteiras improvisadas matam as crianças e o povo morre na ignorância, vítima do primeiro amanuense. E quando surge uma forma de os ajudar, tu afastas-te, dizendo tudo isso não tem importância.
E Sérgio apresentou ao irmão o seguinte dilema:
- De duas uma: ou a noção do dever é coisa que tu não compreendes ou não estás disposto a sacrificar o teu repouso ou até talvez a tua vaidade...
Constantino compreendeu que, se não queria passar por egoísta, não tinha outro remédio senão submeter-se; sentia-se mortificado.
- Nem uma coisa nem outra - declarou em tom peremptório.- Mas não acho possível...
- Que dizes? Pois achas que um melhor emprego das contribuições não permitiria, por exemplo, organizar uma assistência médica séria?
- Não, não creio. Esqueces, efectivamente, que a nossa província abrange uma área de quatro mil verstas quadradas e que muito freqüentemente, com os rios gelados, as tempestades de neve e as épocas de trabalho intensivo nos campos não há comunicações. Além disso, não acredito na eficácia da medicina, para te falar com franqueza.
- Estás a exagerar. Podia citar-te milhares de exemplos... E então as escolas?
- Para que servem as escolas?
- Para que servem? Podes duvidar das vantagens da instrução? Se a achas útil para ti, não tens o direito de a recusar para os outros.
Constantino Levine sentiu-se levado à parede e, irritando-se, involuntariamente, explicou o motivo principal da sua indiferença para com as obras sociais.
- Talvez tudo isso esteja certo - disse ele -, mas para que me hei-de eu afligir por causa desses centros sanitários, de cujos serviços nunca me utilizarei, ou criar escolas, para onde não mandarei os meus filhos nem para onde os próprios camponeses querem mandar os deles? Aliás, não sei se teriam vantagem nisso.
Sérgio Ivanovitch sentiu-se desconcertado por este inesperado ponto de vista, mas imediatamente elaborou um novo plano de ataque.
Calou-se por momentos, retirou a cana da água, atirou a linha para outro ponto do rio e sorrindo dirigiu-se ao irmão:
- Estás enganado... O centro sanitário servir-te-ia para qualquer coisa. Acabas de chamar o médico do zemstvo para tratar Agáfia Mikailovna.
- E nem por isso ficará com a mão mais direita.
- Eis o que se está para ver... Além disso, um mujique, um trabalhador que não seja analfabeto, é-te mais útil e mais valioso.
- Não, quanto a isso, não! Pergunta a quem tu quiseres - replicou Constantino Levine, resolutamente. - Ilustrado, um mujique torna-se muito pior trabalhador. Não se lhe pode mandar arranjar os caminhos e se se manda construir uma ponte, podemos contar que roubará as pranchas.
- Mas não é disso que se trata - disse Sérgio Ivanovitch, franzindo o sobrolho. Não gostava de contradições, e sobretudo daquela maneira de saltitar de um assunto para outro, sempre com argumentos novos, sem ligação entre si. Era impossível responder a tais argumentos.
- Vejamos, estás de acordo em que a instrução é um benefício para o povo?
- Estou - admitiu Levine, sem querer. Logo em seguida se deu conta de que não pensava assim, mas compreendeu num relance que o irmão se ia aproveitar da circunstância para lhe demonstrar a sua inconseqüência. Mas como iria desenvolver essa demonstração? De maneira muito mais simples do que ele imaginava.
- Dado que estás convencido disso - declarou Sérgio -, como homem honrado que és não podes deixar de simpatizar com essa obra e portanto não podes recusar-te a trabalhar em seu benefício.
- Mas se eu ainda não reconheci essa obra como boa? - objectou Constantino Levine, corando.
- Como? Mas acabas de afirmar...
- Não, não a acho nem boa nem possível.
- Como é que o podes saber, se nada fizeste para isso?
- Bem, suponhamos que a instrução do povo é um benefício - concedeu Constantino sem a mínima convicção. - Não vejo que isso seja razão para que eu me preocupe com ela. - Como assim?
- Bom, já que principiámos a falar neste assunto, explica-mo do ponto de vista filosófico.- Não percebo a que vem a filosofia neste caso - replicou Sérgio Ivanovitch, e Levine sentiu-se vexado, percebendo, pelo tom do irmão, que ele o não considerava apto a falar de filosofia.
- Achas? - tornou-lhe, exaltando-se. - Sou de opinião que o interesse pessoal constitui sempre o móbil das nossas acções. Ora eu, conquanto fidalgo, não vejo nada nas novas instituições, nada que possa concorrer para o meu bem- estar. As estradas não são melhores nem podem vir a sê-lo. Aliás, os meus cavalos levam-me tão bem pelas boas como pelas más estradas. Não preciso nem de médico nem de postos sanitários. Quanto ao juiz de paz, nunca recorri aos seus serviços nem recorrerei. E as escolas, em vez de me serem úteis, só me dão prejuízos, como acabo de te demonstrar. O zemstvo não representa, por conseguinte, para mim, mais do que um imposto suplementar de dezoito copeques por desiatina e de incômodas viagens à cidade, onde me sinto obrigado a pernoitar num quarto cheio de percevejos e a ouvir toda a espécie de inépcias e de incongruências. E em tudo isto não vejo que o meu interesse pessoal esteja a ser beneficiado.
- Dá licença - interrompeu Sérgio Ivanovitch, com um sorriso.
- O nosso interesse pessoal também não estava em jogo quando fomos levados a lutar pela abolição da escravatura e nem por isso deixámos de trabalhar nesse sentido.
- Não! - interrompeu pelo seu lado. Constantino Levine, cada vez mais exaltado - A abolição da escravatura era outra coisa. Aí existia o interesse pessoal. Queríamos livrar-nos desse jugo que oprimia toda a boa gente, mas lá o ser vogal para deliberar sobre o número de latas de lixo e de canos de esgoto necessários à cidade, onde nem sequer vivo, o ser jurado para julgar um mujique que roubou um presunto e ficar seis horas a ouvir todas as tolices que dizem os defensores, os fiscais ou o presidente do tribunal, perguntando ao meu amigo Aliocha, o tontinho "Senhor acusado, reconhece-se culpado do roubo do presunto?" Que te parece?
Constantino Levine, arrastado pela sua argumentação, pôs-se a imitar o presidente do tribunal e Aliocha, o tonto. Afigurava-se-lhe que tudo estava relacionado com o objecto da discussão, mas Sérgio Ivanovitch encolheu os ombros.
- Mas afinal, onde queres tu chegar?
- A isto apenas. Sempre que se trate de direitos que me digam respeito, isto é, que digam respeito ao meu interesse pessoal, eu cá estarei para os defender com unhas e dentes. Quando éramos estudantes e a polícia nos ia revistar a casa ou nos ha a correspondência, eu estava pronto a defender os meus direitos à instrução, à liberdade. Estou pronto a discutir o serviço militar obrigatório, que atinge directamente o destino dos meus filhos, de meus irmãos e de mim próprio. Estou pronto a discutir as coisas que me afectam. Mas não sei participar da chicana que discute o emprego de quarenta mil rublos dos fundos do zemstvo, nem sentenciar o tonto do Aliocha.
Constantino Levine falava com tal ímpeto que parecia ter-se lhe rompido o dique da loquacidade Sérgio Ivanovitch sorriu-se.
- E se amanhã tiveres um processo às costas, acharás melhor ser julgado na antiga auditoria criminal?
- Nunca serei processado. Não penso matar ninguém. Tudo isso, repito-te, não me serve para nada - continuou Levine, e de novo passou a falar de um assunto que nada tinha a ver com o tema em discussão - Queres saber, essas histórias do zemstvo fazem-me lembrar ramos de bétulas que nós enterrássemos no chão, como se costuma fazer pelo Pentecostes, para fingir uma dessas florestas que na Europa crescem de maneira absolutamente natural. Ora eu recuso-me a regar esses ramos e a acreditar que irão ganhar raízes e transformar-se em grandes árvores.
Embora tivesse compreendido imediatamente o que o irmão queria dizer, Sérgio nem por isso deixou de encolher os ombros, como que a mostrar a surpresa que lhe causava ver surgirem na discussão aqueles ramos de bétula. - Isso não é argumento - observou.
Mas Constantino Levine, sentindo-se culpado por não reconhecer em si interesse pelas coisas públicas, procurou justificar a sua atitude.
- Acho que não há interesse duradouro desde que não seja fundado no interesse pessoal - continuou ele - É uma verdade geral, Filosófica, sim, fi-lo- só-fi-ca - repetiu, como para demonstrar que tinha o mesmo direito que qualquer outro de falar em filosofia.
Sérgio voltou a sorrir "Também ele", pensou com os seus botões, "arranja uma filosofia para pôr ao serviço das suas inclinações"
- Bom, deixa a filosofia em paz - disse, por fim - O principal problema da filosofia, em todos os tempos, sempre foi o da necessidade de se encontrar a relação indispensável entre o interesse pessoal e o interesse geral. Mas isso não tem nada que ver com a nossa conversa. Pelo contrário, preciso de rectificar a tua comparação. Não enterramos no solo ramos de bétula, plantamos àrvorezinhas novas que precisam de ser tratadas com cuidado. As únicas nações com futuro, as únicas a que pode dar se o nome de históricas, são as que compreendem o valor das suas instituições e que portanto as sabem apreciar.
Transitando para um terreno - o terreno da filosofia da história
- em que Constantino o não podia acompanhar, Sérgio demonstrou lhe,peremptoriamente, o erro do seu ponto de vista.
- Quanto à tua repugnância pelos negócios - concluiu ele -, terás de desculpar me se eu a debito à conta da nossa indolência russa, das nossas antigas maneiras de grandes senhores. Estou certo de que hás de acabar por reconhecer
o erro em que incorres.
Constantino calava-se. Dando se conta de que estava vencido, sentia que o irmão não compreendera a sua idéia. Ter se ia explicado mal? Ou seria o irmão que o não entendera? Sem aprofundar o problema, não levantou qualquer outra objecção e não pensou noutra coisa se não no assunto em que estava empenhado. Entretanto Sérgio Ivanovitch recolhia a linha de pescar e desprendia o cavalo Ambos regressaram a casa.
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Ana Karênina - Liev Tolstói
RomanceEste é o maior romance adúltero da literatura universal. Ana, uma mulher casada, vive uma paixão proibida com Vronski, seu amante, que na verdade é um canalha. Assim começa a entrar, cada vez mais, em um abismo de mentiras e destruição. Tolstoi cons...