QUARTA PARTE-CAPÍTULO III

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- Encontraste-te com ele? - perguntou, quando se sentaram junto à mesa, debaixo do candeeiro - Aí tens o castigo por teres chegado tarde.
- Sim, mas que aconteceu? Não tinha de assistir ao Conselho?
- Esteve lá, mas voltou. Agora foi-se embora outra vez. É o mesmo. Não fales disso. Onde tens estado? Sempre com o príncipe?
Ana conhecia todos os pormenores da vida de Vronski. Ele quis responder lhe que, como não dormira de noite, fora surpreendido pelo sono em pleno dia, mas, ao ver lhe a expressão agitada e feliz, receou dizer-lhe a verdade. Disse então que se vira obrigado a apresentar um relatório longo após a partida do príncipe.
- Mas acabou tudo? Foi-se embora?
- Foi, graças a Deus, já não podia mais, podes crer.
- Porquê? Não é essa a vida que vocês, homens novos, levam habitualmente? - disse Ana, de sobrolho franzido, pegando, sem olhar para Vronski, num crochet que tinha em cima da mesa.
- Há muito tempo que me deixei dessa vida - replicou Vronski, surpreendido com a mudança que se operara no rosto de Ana e procurando compreender o que isso significava. - Confesso-te - continuou, sorrindo, e mostrando os seus belos dentes brancos - que durante esta semana me vi nessa vida como que num espelho e com que desprazer! Ana tinha o trabalho nas mãos, mas não fazia nada, fitando Vronski com os olhos estranhos e brilhantes e uma expressão hostil.
- Esta manhã esteve aqui a Lisa Ainda vem a minha casa, apesar da condessa Lídia Ivanovna - observou Ana - e falou me na vossa noite de orgia. Que horror!
- Pensava exactamente dizer-te Ana interrompeu-o. - Já conhecias essa Thérèse? - Queria dizer-te.
- Que odiosos vocês são, os homens! Como podem vocês supor que uma mulher esqueça essas coisas? - disse ela, exaltando se cada vez mais e revelando-lhe, assim, a causa da sua irritação - Sobretudo uma mulher que, como eu, da tua vida só pode saber aquilo que tu lhe queiras dizer. E como poderei eu saber que me disseste a verdade?
- Ana! Ofendes-me! Pois não acreditas em mim? Não te disse já que não há um pensamento que te não confie?
- Sim, sim - replicou ela, procurando jugular os ciúmes que sentia - Mas se soubesses o que eu sofro. Acredito, acredito. Bom, que estavas a dizer?
Vronski, porém, não pôde lembrar se do que estava a dizer. Aqueles acessos de ciúme, que ultimamente acometiam Ana com mais freqüência, horrorizavam-no. Claro que ainda eram provas de amor, mas nem por isso o assustavam menos e, conquanto ele não lho mostrasse, arrefeciam o amor que sentia por ela. Muitas vezes dissera para si mesmo que o amor de Ana constituía para ele a felicidade, e agora, que ela o amava como pode amar uma mulher que tudo sacrificou à sua paixão, sentia-se mais longe da felicidade do que na época em que abandonara Moscovo para a seguir. É que então uma promessa de felicidade brilhava no meio do seu infortúnio, enquanto que, presentemente, os dias de felicidade pertenciam ao passado. Uma grande mudança, tanto física como moral, se verificara em Ana. Ganhara carnes e, por vezes, como havia momentos, ao falar da actriz, uma expressão de ódio lhe alterava a fisionomia Vronski olhava a agora como se olha para uma flor murcha, em que não encontrava já a beleza que o levara a colhê-la. No entanto, se era certo que outrora, por um esforço de vontade, seria capaz de arrancar aquele amor do coração, agora, pensando embora que lhe queria menos, sentia-se como que acorrentado para sempre àquela mulher.
- Bom, que me querias tu dizer do príncipe? - voltou Ana - Fica descansado, já corri com o demônio (assim denominavam entre si ao ciúme) Que me contavas tu do príncipe? Por que te desagradou ele?
- É insuportável - retorquiu Vronski, procurando apanhar o fio do pensamento. - Nada ganha em ser conhecido de perto. Só o posso comparar com um desses animais muito nédios que ganham medalhas nas exposições - acrescentou, com uma repugnância que interessou Ana.
- Que estás a dizer? - voltou ela - No entanto é um homem instruído, que tem viajado muito.
- A instrução dessa gente não é igual à nossa. Dir-se-ia que não adquiriu instrução senão para ter o direito de a desprezar, como, aliás, despreza tudo, salvo os prazeres bestiais.
- Mas não gostam vocês todos desses prazeres bestiais? - interrompeu Ana.
E Vronski de novo reparou no seu olhar sombrio que evitava encontrar se com
o dele.
- Porque o estás a defender assim? - perguntou ele, sorrindo.
- Eu não o defendo, é-me demasiado indiferente para isso. Mas se essa vida te desagradava tanto como dizes, podias bem, acho eu, ter arranjado uma desculpa qualquer. Mas não, Sua Excelência sente prazer em mirar essa tal Thérèse vestida de Eva.- Lá vem outra vez o demônio! - disse Vronski, pegando, para beijar, a mão que Ana pousara em cima da mesa.
- Sim, pode mais do que eu? Não calculas o que eu sofri enquanto te esperava? No fundo, não sou ciumenta quando estás a meu lado acredito em ti, mas quando tu levas, não sei onde, só Deus sabe que vida.
Voltou se e apoderando se, finalmente, do crochet, pôs se a trabalhar, movendo o dedo indicador, que ia deixando cair, uma atrás das outras, as malhas de lã branca que brilhavam à luz do candeeiro. E a mão fina movia se lhe rápida e nervosa na manga bordada.
- Onde encontraste tu Alexei Alexandrovitch? - articulou em seguida a sua voz pouco natural.
- Cruzámo-nos à porta da rua.
- E ele cumprimentou-te, mesmo assim?
Estendeu o rosto, semicerrou os olhos, cruzou os braços e de tal sorte alterou a expressão do rosto que Vronski reconheceu imediatamente Alexei Alexandrovitch. Ele sorriu e Ana soltou uma gargalhada, uma dessas gargalhadas frescas e sonoras, que eram um dos seus encantos.
- Decididamente não o compreendo - disse Vronski. - Se depois da explicação que tiveste com ele este Verão na casa de campo tivesse rompido contigo, se me tivesse desafiada para um duelo, achava natural; mas, assim, não
o entendo. Como pode ele suportar uma situação destas? E no entanto vê-se que sofre.
- Ele? - disse Ana com ironia. - Está muito satisfeito.
- Porque havemos nós de andar atormentados, se as coisas se podiam resolver tão facilmente?
- Não com ele. Porventura não conheço eu a mentira em que ele está todo mergulhado?... Se houvesse nele algum sentimento, poderia viver como vive comigo? Não entende nem sente nada. Viver sob o mesmo tecto com a mulher culpada! Falar com ela, tratando-a por tu!
Involuntariamente Ana tornou a imitá-lo: "Tu, ma chère (Nota 36), tu, Ana."
- Não é um ser humano; não é um homem, é um boneco. Ninguém mais o sabe, mas eu sei-o. Oh! Se eu estivesse no lugar dele, há muito teria despedaçado uma mulher como eu em vez de lhe dizer: "Tu, ma chère, Ana." Não é um homem, é um autômato ministerial. Não compreendeu que eu sou tua mulher, que ele é um estranho, que está a mais... Não falemos, não falemos mais nele!...
- Não tens razão, querida-disse Vronski, procurando acalmá-la.- Mas é o mesmo, não falemos mais nele. Conta-me que fizeste estes dias. Que tens? Que doença é essa? Que disse o médico?
Ana olhava-o com uma alegria irônica. Devia ter-se lembrado de outros aspectos ridículos e grotescos do marido e esperava a oportunidade de falar deles.
Mas Vronski prosseguia:
- Calculo que se não trata de uma doença, mas do teu estado. Quando será?
O brilho irônico desapareceu dos olhos de Ana, mas veio substituí-lo outro sorriso, indício de que havia alguma coisa que ele ignorava, e uma tristeza suave.
- Pronto, pronto. Dizias que a nossa situação é atormentadora e que precisamos de a esclarecer. Se soubesses o quanto me é penosa e o que eu daria para poder amar-te livre e abertamente! Não sofreria nem te faria sofrer com os meus ciúmes... E isso acontecerá breve, mas não como imaginamos.
E perante a ideia de como isso iria acontecer, Ana sentiu-se tão infeliz que as lágrimas lhe subiram aos olhos e não pôde continuar. Pousou na mesa uma das mãos que brilhava sob a luz do candeeiro, na sua brancura e nos seus anéis.
- As coisas não acontecerão como pensamos. Não queria falar-te disso, mas tu mesmo me obrigaste a fazê-lo. Breve, muito breve, se resolverá tudo, tranqüilizar-nos-emos todos e não sofreremos mais.
- Não entendo - replicou Vronski.
- Perguntaste-me quando? Dentro de pouco. Mas será o fim. Não me interrompas! - E Ana falou depressa. - Sei-o de certeza. Vou morrer e muito contente me sinto de vos deixar livres aos dois.
As lágrimas brotaram-lhe dos olhos; Vronski inclinou-se sobre a mão dela e pôs-se a beijá-la, procurando dominar a emoção, que sabia sem fundamento, mas não podia vencer.
- Assim será melhor - disse Ana, apertando-lhe a mão num movimento enérgico. - É a única coisa que nos resta. Vronski dominou-se e levantou a cabeça.
- Que tolice! Que disparate estás a dizer! - É verdade.
- Que é verdade?
- Que vou morrer. Tive um sonho.
- Um sonho? - repetiu Vronski, e recordou, de súbito, o mujique com quem sonhara.
- Sim, um sonho - disse Ana. - Foi um sonho que tive há muito tempo. Sonhei que entrava correndo no meu quarto de dormir, onde tinha de ir buscar qualquer coisa e informar-me não sei de quê; já sabes como são os sonhos - continuou, de olhos muito abertos, horrorizada. - E ali, no meu quarto, a um canto havia...
- Oh! Que tolice! Como podes tu acreditar...? Mas Ana não deixou que ele a interrompesse. Era importante demais para ela o que estava a dizer.
- Isso que estava a um canto voltou-se e eu pude ver então que era um mujique pequeno e terrível, de barba desgrenhada. Quis fugir, mas o mujique inclinou-se sobre um saco e principiou a rebuscar lá dentro...
Ana fez o gesto de alguém que rebusca o interior de um saco. O horror pintava-se-lhe no rosto, e Vronski, lembrando-se do sonho que tivera, sentiu que esse mesmo horror lhe invadia a alma.
- O mujique remexia no saco e falava muito depressa em francês, fazendo esgares. Il faut battre le fer, le broyer, le pétrier... (Nota 37) Quis acordar e acordei... mas em sonhos. Principiei a perguntar-lhe o que significava aquilo. E Kornei respondia-me: "Morrerá de parto, morrerá de parto, mãezinha..."
- Que tolices! Que tolices! - repetiu Vronski, mas dava-se conta de que o tom da sua voz nada tinha de convincente.
- Não falemos mais nisso. Toca a campainha. Vou mandar servir o chá. Não, espera, parece-me que...

Ana Karênina - Liev TolstóiOnde histórias criam vida. Descubra agora