RPG
Eu costumava chorar muito. Com sete anos de idade, qualquer tombo ou tropeço era razão para começar um berro. No entanto, eu não ligava para a dor física. No fundo, meu real motivo era chamar a atenção das pessoas. Precisava de alguém cuidando de mim, pois sempre fui uma criança mimada e despreparada. Minhas ações eram movidas por impulso, no auge de todos os sentimentos infantis. Contudo, meus pais não queriam saber disso. Ele me deixava nos braços de qualquer um a sua frente. Ela recorria às empregadas. No fim das contas, apenas Adele, a velha e gorducha governanta da casa tentava alguma coisa. Sempre trazia leite e biscoitos, me colocava nos braços e cantava antigas canções de ninar toscanas, lugar onde crescera antes de ir à Roma.
No entanto, eu continuei a chorar. Todos os dias. Até que um dia o cansaço me fez parar. Nesse dia eu comecei a enxergar a realidade que me cercava. Nesse dia eu me tornei uma nova pessoa. Decidi não derramar mais nenhuma lágrima, nem que o mundo me esmagasse por completo. Permaneci intacto e livre de qualquer ataque exterior. Além do mais, era uma demonstração explícita da fraqueza humana. Patético.
Dessa forma, nunca soube lidar com pessoas em estado emotivo. Procurava tentar parecer indiferente aos sentimentos dos outros. Mesmo que depois me arrependesse disso.
Gabriele apareceu na minha vida há dois anos. Era uma jovem de cabelos castanhos, pele clara e olhos brilhantes. Seus lábios eram carnudos e havia algumas sardas pintando o seu rosto. Usava vestidos floridos e chinelos quando passeava pelas Via Giuseppe em uma velha bicicleta azul. Gabriele se apaixonou por mim no primeiro momento que me viu fumando alguns tragos de Malrboro na frente da mansão Stonem. Logo percebi isso e não medi esforços para tentar conquista-la. No entanto, eu não queria nada mais que pegação. Certa noite, ela me encontrou flertando com outra garota em um bar e começamos a brigar na frente de todo mundo. Então, ela começou a chorar. Chorou por vários minutos. Eu não disse nada. Gabriele não era uma pessoa má, apenas tinha um coração muito suscetível. Com o passar do tempo, as pessoas aprendem a criar uma barreira que as livram desse tipo de dor, porém, Gabriele ainda estava machucada. O relógio da Igreja mais próxima começava a badalar quando ela limpou os olhos e me encarou sussurrando. "Spero che un giorno, una lacrima può risvegliare il vostro cuore di pietra.". Então deixou o bar. Saiu silenciosamente. Sem olhar para trás. Nunca mais cheguei a vê-la.
Naquele tempo, eu não quis admitir no quanto pensei nas palavras de Gabriele. Decidi apenas ignorar qualquer reflexão sobre o assunto e seguir minha vida. Contudo, ainda não conseguia fazer nada diante de alguém que está chorando. Era uma situação desconfortável
Ver Jade assim me deixou hesitante. Ela estava realmente alterada. Fez questão de dizer que o choro fora ocasionado pelo conteúdo de uma carta. Carta esta que me entregou logo em sequência. No entanto, também parecia estar brava pelo atraso. Ou seja, eu também tinha minha parcela de culpa. Engoli seco e me aproximei pegando o envelope. Era um pergaminho onde uns rabiscos finos e apressados representavam a letra feminina. O recado contido no curto paragrafo dizia a Jade para não voltar à casa durante as férias. Apenas isso. Palavras rápidas, duras e frias que me soaram estranhamente familiares.
- Tem problemas com sua mãe? – perguntei diretamente. Não era um papo interessante. Me traziam más lembranças. Se tivesse que mudar de assunto para poder avançarmos, eu mudaria.
Dobrei o pergaminho e lhe entreguei cuidadosamente. Seus olhos estavam inchados. Eu não sabia se devia tentar algo. Contudo, com Jade era diferente. Eu já percebera isso. Não gostaria de ignorar aquele momento e sabia que deveria pelo menos me aproveitar da situação. Usando a lábia, claro. Ela ainda estava brava. Recebeu o item com má vontade. Naquele momento, começou a responder a minha pergunta. Depois disso, decidi dar algumas explicações.
- Não fica assim. – comecei-me aproximando e colocando a mão no seu rosto. Se deveria tentar algo que fosse à base da conquista. – Eu apareci. Certo? – arqueei as sobrancelhas. – E agora quero saber o que mereço. – uma pausa. Esbocei um meio sorriso.
Estava agindo normalmente. Meu único objetivo era saber quando poderia avançar com Jade. Não seriam alguns problemas que impediriam minha ação. Mesmo que eu tivesse de ignorar seus sentimentos. Mais uma vez.
Jade e eu criamos uma história triste para sua personagem, focando nos familiares. A história era banal e sem muita profundidade, pois o nosso foco era a situação de meu personagem com os pais. E assim foi. Contei com o meu personagem tudo o que não conseguia dizer na realidade. E assim Jade e eu ficamos cada vez mais próximos.
***
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Meus pais me obrigaram a vir a Hogwarts. Nunca foi decisão minha. Se dependesse de mim, continuaria em Roma. Vivendo a vida. No entanto, sob os olhares rígidos do Sr. Stonem, não houve alternativa a não ser aceitar a carta da escola. Eu ainda dependia deles e por mais que quisesse ser "livre", existiam muitos empecilhos por cima.
Escutando a história de Jade, percebi que não era tão diferente da minha. Sua mãe provavelmente não queria a presença da garota em casa e, de repente, uma dúvida formou-se na minha cabeça. Meus pais também me odeiam? Queriam eles se livrar do filho ao enxertar-me no Expresso de Hogwarts? Eu não duvidaria. Tinha certeza que viam a oportunidade de esquecer o filho problemático por alguns anos. Quem sabe na esperança de que o colégio o endireitasse? Talvez também me mandassem uma carta dessas. Quem sabe? Ah, mas eu nunca lhes darei esse sabor de vitória. Estarei sempre acima deles. Custe o que custar.
Enquanto a lufana terminava de explicar o motivo do choro, eu decidi permanecer quieto. Durante e depois da explicação. Não havia motivos para aprofundar esse assunto considerando que meus objetivos eram outros. Tudo que eu queria era tirar o foco de sua atenção para mim. Esperava que Jade caísse nos meus braços novamente, pois tudo levava a crer que a garota estava afim de mim. Eu não queria esperar mais um pouco. Precisava de uma resposta firme. Quando finalmente percebesse que a jovem, de personalidade tão forte e intrigante, tivesse caído no meu papo, iria ganhar meu verdadeiro prêmio.
Não seria uma história triste de família que iria abalar meu ânimo. Existem muitas famílias no mundo. Todas elas com problemas. Ninguém escapa. Jade era apenas mais uma vítima disso. Suas dores eram compreensivas, mas não chegariam a me tocar. Pelo menos foi o que pensei.
O sorriso que estampava meu rosto foi sumindo gradativamente enquanto a garota respondia a minha pergunta. Na verdade, ela parecia desabafar comigo. Não conseguiu controlar as lágrimas. Caiu em prantos e começou a soluçar. Eu estava diante de uma bomba. Uma bomba em estado crítico, cheia de sentimentos exaltados e prestes a explodir. No entanto, o pior de tudo era ter que repreender minha compaixão pela história de Jade. Eu sentia algo em relação a ela, mas ainda não sabia exatamente o que era. Talvez porque nunca tivesse escutado alguém ser tão direto comigo. Sua penúltima frase, seguida de uma pergunta, tinha calado minha boca. "E aposto que só está aqui por mais uma conquista. Você nem ao menos sente algo por mim, não é mesmo?". Ela estava certa. Tudo que eu queria era uma conquista. Mas isso nunca foi um problema para mim. Certo? Eu nunca me importei com os sentimentos de ninguém. Com Jade não deveria ser diferente. Ou era?
"Concentre-se, Isaac! Não caia nisso.", censurei-me mentalmente. Não havia nada em Jade. Contudo, a garota ainda era deveras interessante. Apesar do leve fraquejamento, eu não desistiria agora. Estava perto da minha vitória.
- Ei! O que está fazendo? – perguntei franzindo o cenho. – Vai chorar mesmo? Desculpa, mas sinceramente não foi essa a visão que tive de você. – uma pausa. Desviei o olhar. – Achei que era mais forte que isso, Elizabeth. Chorando por causa das pessoas? Isso é perca de tempo. – voltei a encará-la com seriedade. – Eles vão te machucar e vão te tratar como se fosse lixo. Eles não se importam com você. Querem te ver pra baixo. O mundo é assim. Sempre foi. Mas e você? Você decide como quer revidar e eu te aconselho: Que se danem eles! Viva sua própria vida. Por si. Sem avaliações. – me aproximei e apontei um dedo indicador para Jade. – Não permita que ninguém te impeça de ser feliz. Escutou? Ninguém.– engoli seco.
Jade precisava acordar. Não dependia de mim, mas eu decidi não ficar parado.
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Short StoryJade Elizabeth Zahrah é uma britânica que vive com sua família muçulmana em Londres. Isaac Lattanzi é um italiano que vive com a família que odeia em Roma. Os dois não tem muito em comum, mas isso não os impediu de iniciarem uma conversa virtual. Os...