Chiado

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Eduarda saiu da sala com o pedido do investigador que voltasse no dia seguinte, quando estivesse em melhores condições de depor

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Eduarda saiu da sala com o pedido do investigador que voltasse no dia seguinte, quando estivesse em melhores condições de depor. Tinha de voltar, é claro. Seus olhos a traíram, mostraram ao investigador que ela escondia algo.
Mauro esfregava o olho com força, ardia e ardia mais quando ele coçava. Ainda assim seu dedo indicador ia de um lado para o outro, por dentro da linha d'água e por fora, tirando alguns cílios e fazendo a íris ficar seca. De um lado para o outro, esfrega, coça, coça mais e esfrega.

- Tá aqui o café, Miranda fez, tá bem melhor que o outro. - Carlos riu. - Mais doce também.

- Gosto assim. - Mauro tirou a mão do olho, voltando em seguida.

- Melhor lavar isso aí. Teu olho tá vermelho, já. - O guarda bocejou, escorado no batente da porta e com o copo de vidro de café preto na mão.

Mauro assentiu, foi até o banheiro pequeno que ficava mais perto. O primeiro box estava interditado,  o segundo estava ocupado e só o terceiro estava livre. Ninguém usava as pias, para onde ele se dirigiu.

Jogou água no rosto. Gelada. Deliciosa. Sorria enquanto molhava o couro cabeludo e a nuca, precisava respirar. Pensar em possíveis soluções para o caso só lhe dava dor de cabeça. E, ainda assim, fazia tempo que não se sentia tão vivo, desafiado.

Mauro se sobressaltou, assustado, no ambiente lajotado o toque de seu celular ecoava, soando alto. Pegou o aparelho e se surpreendeu com o horário, já era quase onze da manhã e sua ex mulher ligava. Silenciou a ligação, mas ela tornava a ligar. Respirou fundo e atendeu.

Um chiado alto e constante impedia que escutasse direito o que Beatriz dizia. A separação recente fazia sua ex achar que ele ainda tinha obrigação de estar a sua disposição a qualquer momento, mesmo que ela tenha terminado.

- Mauro... - E o resto da frase se perdia na estática.

- Alô, Beatriz? Tá me ouvindo?

A porta do banheiro abriu e o homem notou que quem estava ali era o garoto do prédio, Ícaro. O garoto do poema bonito. Quis perguntar do que Eduarda havia falado, mas a lei o impedia, não estavam oficialmente em depoimento e Ícaro era menor de idade. Engoliu suas dúvidas e apenas observou o garoto lavar as mãos e sair, sem notar a presença grande de Mauro.

O chiado foi embora com ele e a voz de Beatriz ficou clara.

※※※

O edifício Belo Paraíso aparecia de baixo para cima, com o sol de meio dia a construção ficava mais evidente. Bonito, recém pintado, não parecia cenário de atrocidades.

Georgiana olhava de cara feia para os guardas que vigiavam a entrada, enquanto trabalhavam nas ferragens do elevador que havia despencado. Vagner filmava o rosto da mulher, franzido como se tivesse sido pessoalmente ofendida. O câmera riu.

- Você acha isso muito engraçado, mas é essa matéria que vai dar dinheiro pra gente, idiota. - Ela apontou para o prédio com intensidade. - Bom cê lembrar que a gente não tem salário fixo.

A câmera voltou para a entrada, onde bombeiros conversavam com policiais e homens de terno. Eram os únicos repórteres ali, os outros estavam na delegacia, esperando um pronunciamento. Esperando alguma explicação para anunciarem aos telespectadores e leitores.

Uma mulher se aproximou e foi impedida de entrar. A moradora do prédio ficou irada, seus gritos foram ouvidos até mesmo de onde Georgiana estava. Vagner filmava a mulher, que exigia seu direito de pegar suas coisas. Um homem de terno se aproximou, pondo a mão em seu ombro e falando-lhe algo com calma. Ela aquiesceu e, depois de alguns segundos, se virou para ir embora.

Georgiana não perdeu tempo, correu atrás da mulher e Vagner correu atrás de Georgiana.

- Senhora! Senhora, com licença! - gritou a repórter, chamando atenção de alguns policiais.

A mulher se virou, parando de andar e estreitando os olhos. Não estava calma como parecera depois de o homem de terno lhe dizer algo. Na verdade, tremia.

- Quer o quê, urubu? - perguntou, quase rosnando.
- A senhora pode me falar algo sobre o que aconteceu no Belo Paraíso? - Georgiana não estava abalada com o nome.

Vagner focou no rosto da mulher, que olhou para os homens na frente do prédio com ódio explícito antes de responder:

- Quer saber o que aconteceu? Pois eu te conto, o espírito veio se vingar porque desistiram de procurar o corpo e não vai descansar até ter um enterro decente, isso sim. Meu filho disse que eu não devia falar essas coisas, mas essa é a verdade. Aquele prédio tá assombrado pela alma...

Uma mão tapou a câmera e um barulho alto soou.

Escutou?

Trac, trac, trac.

Escuridão e Silêncio.

※※※

Diário encontrado por Grasiela Lima de Queiroz

"05/03
Já era madrugada quando comecei a sentir o sono me dominar, estava naquele período que deslizamos para o sonho, mas ainda estamos do lado de cá o suficiente.

Senti algo pular em minha cama e se arrastar até se acomodar em minha perna. O costume me era familiar, minha gata fazia isso todas as noites.
Mas um arrepio passou por todo meu corpo, percebi que tremia, temendo olhar para baixo.

Minha gata morreu há sete anos."

Canções Submersas (AMOSTRA)Onde histórias criam vida. Descubra agora