Sem Sono

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Indico que leiam escutando a música. É totalmente instrumental e me inspirou bastante nessa capítulo. É da trilha sonora do filme A Bruxa, um dos meus filmes de terror favoritos ♡
Aperte o play ;)

 É da trilha sonora do filme A Bruxa, um dos meus filmes de terror favoritos ♡Aperte o play ;)

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Eduarda estava no supermercado. Sua memória era vaga, havia uma canção, isso era certeza, mas o resto era nebuloso. A luz azulada ardia em seus olhos, o ritmo do relógio grande na parede estava martelando. Sabia o que tinha de fazer. As frutas que pegava estavam bonitas, grandes e cheirosas. O cheiro forte e doce invadia seus sentidos. Deveria comer, pensou. Sentiu uma pequena coceira em seu braço, acabou olhando para trás. O local estaria vazio não fosse por uma outra mulher longe, do lado oposto ao dela, muito longe para a olhar direito.

Voltou a escolher suas frutas. Maçã, banana, morango, pêssego. O cheiro doce estava mais intenso, lhe deu água na boca. Coma logo, pensou. Pegou uma banana, descascou e comeu. Rápido, engolindo antes de mastigar, provando antes de sentir. Comeu mais uma e mais uma e mais uma. As enfiava na boca inteiras, com casca. Lambia as mãos quando um arrepio lhe subiu da cabeça aos pés, tão forte que lhe fez estremecer.

Olhou para todos os lados, a mulher estava mais perto, ainda de costas. Eduarda tinha certeza que estava sendo vigiada. Nada mais de fome. Engoliu em seco, procurou um caixa para pagar o que tinha comido, mas não havia mais ninguém. Só ela e a outra mulher. Virou, procurando por ela, entretanto não estava mais lá. Outro arrepio passou por seu corpo, Eduarda sabia que estavam lhe observando e a outra sabia onde ela estava.

Tlap Tlap Tlap Tlap

Eram passos molhados trotando, passos molhados ecoando, passos molhados se aproximando.

Corra, pensou. Notou que a voz não era a sua, era a voz do sonho, a voz da música.

Eduarda saiu correndo pelos corredores vazios, corria para a saída, para a liberdade, para casa. Um medo sem explicação tomava seu corpo, pesava seu sangue e enchia seus ouvidos.

Esperança da solidão e de paz. Sua respiração falhava e o peito comprimia. A queimação em sua nuca parecia derreter a pele, correu mais, pois sabia, estava num jogo de caça e caçador onde ela era a presa. Presa fácil. Ignorante. Tentou correr mais rápido, mais rápido e mais rápido, tarde demais. Desastre. Escorregou e deslizou alguns metros antes de parar. Olhou em volta, procurando por algo.

Tlap Tlap Tlap Tlap

Os passos molhados corriam, os passos molhados pararam, os passos molhados se aproximaram.

Eduarda sentiu uma respiração quente em sua nuca, mas não esperou para ver. Se levantou e voltou a correr, saindo dali. Um pé após o outro após o outro após o outro, chorando. O coração batia com força, a respiração rápida e entrecortada dava sinais de cansaço. Correu pela rua até o prédio, nada de compras.

Subiu pelas escadas sem falar com ninguém, entrou em casa e foi direto para o quarto. Trancou a porta. Foi devagar até a cama e tirou a roupa, coçando todo o corpo com força e chorando, mas voltou e andou até sua mesa de trabalho, que ficava no mesmo cômodo.

Precisava se acalmar e o trabalho acalmava. Pano pronto, mãos à obra, obra em massa. Puxa, corta, espeta e puxa, lá ia a linha, foi dando forma à imagem, mas... a forma não se firmava. A mínima distração em algum detalhe a fazia notar que estava fazendo outro desenho, um que sua mente via quando os olhos se fechavam por alguns segundos.

Desistiu, naquele dia nada daria certo. Continuar seu trabalho na saia era tarefa inútil. Fechou os olhos e pensou em tudo que deveria esquecer. Não conseguia tirar da pele aquela sensação horripilante de estar sendo analisada, dissecada e espalhada.

Balançou a cabeça e se chamou de louca. Era isso. Depois de assistir tantas histórias sobrenaturais estava começando a confundir realidade com ficção. Pegou seu diário, iria escrever, escrever e escrever até que o incômodo passasse. Até que o demônio em sua mente fosse exorcizado. Sim, pois aquilo sempre a deixava mais calma, tranquila, aquilo lhe aliviava.

Tentou começar, mas não conseguia descrever o que havia sentido. O que não havia visto. Como escrever o que não tinha visto? Se fechasse os olhos a sensação voltava, entretanto não conseguia escrever nenhuma palavra maldita. Nenhuma palavra saia. Nenhuma palavra descrevia o que não foi visto.

Cantarolou a canção de Ícaro, pois não lembrava as palavras, seu cérebro as dissolveu e absorveu. Ele bebeu cada uma delas, e agora estava ali dentro, ecoando eternamente. Ela estava ali.

Outro arrepio fez estremecer todo o seu corpo. Olhou cada centímetro do quarto. Nada. Não tinha nada. Só tinha o que não era visto. Só tinha ela.

Levantou-se de um salto, o coração acelerado e resolveu que iria tomar um banho. Sim, um banho a deixaria calma e tiraria aquelas loucuras dela. Foi para o box devagar e fez questão de ficar lá o máximo de tempo possível, a água lhe acalmava. Mesmo quando não conseguia manter os olhos muito tempo fechados, mesmo quando tirava a cabeça debaixo d'água por achar que a chamavam, mesmo que tivesse de olhar para trás com frequência ao sentir que alguém estava dentro do box com ela.

Quando saiu escovou os dentes, queria dormir e esquecer de tudo aquilo o mais rápido possível, entretanto, assim que acabou e pôs a escova no lugar, sentiu que tudo girava. Pôs uma mão a pia para se apoiar e a outra ficou espalmada sobre o espelho. Respirou fundo algumas vezes, esperando que passasse.

Então sentiu. E quando sentiu, soube. Alguma coisa por trás do vidro se mexeu sob sua pele, ondulou em sua carne macia, tocou em sua mão. Aterrorizada, puxou o braço para longe do espelho. Tremia da cabeça aos pés, agora sabia que estava ali.

Correu para a cama, ficou em posição fetal e se cobriu o máximo que pode. Estava com tanto medo que quase voltou a chorar, mas nem isso conseguia. De repente, escutou um barulho. Batidas na porta do quarto e em seguida sua mãe lhe chamou para jantar. Sua mãe morta. A mãe que não tinha aquela voz. Ela lhe chamou para jantar.

Eduarda estava petrificada de medo, cada músculo de seu pequeno corpo se encontrava duro como se estivessem atrofiados, não havia como responder e a porta trancada por dentro foi aberta por fora.

Tlap Tlap Tlap Tlap entrou no quarto e Eduarda fechou os olhos, fingiu que estava dormindo, fingiu que tinha morrido, fingiu que nada havia acontecido.

Tlap Tlap Tlap Tlap 

Os passos molhados se aproximaram, lhe cercaram e lhe acariciaram.

Os passos molhados lhe deixaram.

Tentou dormir. Tentou desesperadamente dormir. Dormir é esquecer do mundo, dormir é mergulhar fundo, dormir é cavar um mundo por dentro da consciência, mas não conseguia, não podia fechar os olhos, se os passos viessem de novo tinha de estar alerta. Como iria se defender se dormisse?

Seu corpo estava rígido, se encontrava há muito tempo na mesma posição, mas não ousaria mexer-se, ah, não, se pudesse teria parado também de respirar para escutar melhor. 
Continuava a achar que estava sendo observada. Continuou a sentir que era analisada. Continuou a saber que, se dormisse, seria caçada.

Parada, por muito tempo. Tanto tempo que todo o cansaço a venceu.

E, finalmente, ela dormiu.

Canções Submersas (AMOSTRA)Onde histórias criam vida. Descubra agora