O investigador coçou a nuca com a caneta, sem se dar conta que manchava sua pele com a tinta azul. Sua outra mão estava ocupada virando as folhas e procurando por Heitor nas fichas. Achou a de Maia, depois a dele, a pegou e colocou na mesa. Fez as perguntas padrões antes de chegar onde queria.
— Se mudou depois do primeiro incidente?
— Sim, já tinha planos antes de tudo acontecer, depois, então, aceleramos as coisas pra sair de lá.
— Por que quis sair? — O calor já incomodava Mauro, a gota de suor se formava em sua pele e descia, fria, pela coluna vertebral, tocando no tecido da camisa de algodão e, devagar, formando uma mancha arredondada. E, ainda assim, preferia o calor ao barulho do ventilador, que ainda parecia soar em sua mente.
— Precisávamos de mais espaço e queríamos ter animais de estimação, talvez filhos. — Os cantos da boca de Heitor se ergueram, sem dentes amostra, o lábio inferior foi para baixo, um movimento que não chegou aos olhos, porém lhe deu uma expressão esquisita.
Mauro acabou anotando mais as impressões psicológicas do homem do que o que ele falava, ainda que soubesse que nada tinha a ver com os crimes.
— Conhecia a vítima de ontem?
— Bem pouco, morava no andar em cima do nosso, escutávamos muitas brigas com os pais, não eram gente fácil. Maia... hm, Maia sempre pensou em denunciar pro conselho tutelar, ela passava o dia em casa e escutava tudo, mas nunca havia nada realmente concreto, sabe?
— Então, acha que essas discussões possam ter evoluído a esse ponto? — O investigador anotava as palavras, era uma versão bem diferente das que escutava dos outros moradores, que viviam mais abaixo ou acima.
— Sinceramente? Não vejo como, apesar de tudo, eu via como uma rigidez exagerada, excesso de cuidado, botavam a garota numa bolha, sabe, eram pais de mais de cinquenta anos, existia divergência de opinião, mas, olha, tentativa de assassinato é algo bem difícil de imaginar. — O rapaz franziu o cenho e coçou a testa.
— Conhece o menino que morava no apartamento da frente, o Ícaro?
— De vista, nunca conversamos. — Deu de ombros, olhando para o relógio.
— Qual sua opinião sobre ele? — Mauro encarava o homem, queria enxergar cada expressão que passasse ali.
— Sério? — perguntou, incrédulo. O investigador apenas assentiu. — Bem, parece um adolescente normal, hm... é educado, tá sempre com um livro na mão e só, sei lá. Não sei muita coisa, trabalho o dia quase todo, não tenho tempo pra ser amigo da vizinhança.
— Maia era amiga da vizinhança?
— Não sei. — A postura de Heitor voltou a ficar tensa, Mauro notou que o calor também estava agindo sobre o homem.
— Uma outra moradora disse que talvez houvesse algo na água, o que acha disso?
Heitor franziu o cenho e pensou por alguns instantes, fazendo leves caretas, como se espremesse seu cérebro em busca de respostas. Negou com a cabeça, até que parou e seus semblante foi ficando iluminado, voltou a balançar a cabeça em negativa e coçou a testa.
— Bem, talvez, sei lá. Eu... olha, é loucura, mas é que, tipo, no dia do desaparecimento o apartamento inundou, não foi? Lembro que vazou água e também lembro que o jornal disse que a água atrapalhou a buscar por certos tipos de evidencias, algo assim. O prédio teve muitos problemas com o encanamento depois disso, a água ficou com um gosto estranho até ajeitarem e, acredite, demoraram pra ajeitar e no dia que íamos nos mudar o Ícaro caiu num poço do subsolo. — Heitor balançou a cabeça de um lado para o outro, como se pesasse ideias. — Acha que a água se contaminou com alguma coisa? Poderia explicar um surto psicológico, não é?
— Não sei ainda, mas, se sim, pode ser uma justificativa — Mauro disse, suspirando e escrevendo.
— Ainda tem mais perguntas? Eu realmente tenho que ir.
— Só mais uma. — O mais velho terminava de anotar as informações.
— Bem, fique à vontade.
— A mãe da garota jura que não fez nada, diz que tentava salvar a menina, mas ela estava com uma faca enfiada nas pernas da filha. A Selene entrou em coma e, claro, não pode depor pra acusar ou inocentar a mãe. Se a mãe tava falando a verdade, acha que os dois casos podem estar relacionados?
Heitor voltou a seu estado pensativo. Mauro reconhecia esse seu momento, desde a primeira vez que o outro testemunhou, ficou claro que era o tipo de homem que pensava com cuidado e sem pressa antes de falar.
— É uma possibilidade perigosa pro prédio. As duas são, é claro, por um lado, se a mãe estiver falando a verdade, significa que tem um assassino em Belo Paraíso, sumindo com as pessoas, o que poderia até mesmo contar como uma vítima frustrada o Ícaro, que foi encontrado antes de morrer. É uma perspectiva horrível, péssima para os negócios. Por outro lado, temos um desaparecimento, um acidente e uma tentativa de assassinato por uma mãe maluca, é horrível, mas menos pior, dá pra contornar essa notícia. A outra, não.
Mauro assentiu, mas não pôde deixar de insistir:
— Não falou se acha ou não que podem estar relacionados.
— Ah, bem, eu acho que tudo é possível.
— É. — O investigador respirou fundo, sorriu e estendeu a mão. — Obrigada por vir, as testemunhas do primeiro caso não eram obrigadas a aparecer.
— Não tenho muito tempo, mas quis vir logo. — Heitor sorriu. — Posso ir?
— Claro, claro.
— Boa sorte pro seu caso. — O homem desejou, antes de sair pela porta.
Mauro riu, não acreditava em sorte, mas em trabalho constante e, ainda assim, sentiu que sorte lhe cairia muito bem naquele caso. Suspirou e olhou para o teto. Carlos, que até então havia ficado parado perto da porta, se ajeitou quando viu outro guarda aparecer, informando que era hora de pausa para o almoço. Mauro se deixou ir, a barriga roncava e ele ainda pensava na última conversa.
Heitor saiu do pequeno prédio da delegacia e entrou no carro caro que lhe pertencia. Os vidros tão escuros que era quase impossível ver quem estava dentro. Dirigiu até não muito longe, um estacionamento pago de shopping e parou ali, com o ar condicionado no máximo. Tirou a camisa e aproveitou o ar frio em sua pele.
Aquela salinha estava lhe sufocando, o calor e todo aquele suor grudento. Respirou fundo e acabou olhando para suas mãos no volante, apertando o couro com força, diminuiu a força até que suas mãos caíram no colo. Observou suas unhas limpas, seus dedos longos e o peito liso da mão. Observou também a pele abaixo do pulso.
Pele que estava cheia de cicatrizes. Cicatrizes que formavam desenhos.
Formavam arte.
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Canções Submersas (AMOSTRA)
HororPortas trancadas, nenhum sinal de arrombamento, nenhuma testemunha. O edifício Belo Paraíso foi interditado. O início da decadência se dá por um desaparecimento, seguido de uma série de acontecimentos macabros e sem explicação, que transformaram a p...