Uma Melodia

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Maia levantou da cama de um pulo, havia escutado um grito

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Maia levantou da cama de um pulo, havia escutado um grito. Ficou tonta por se erguer de forma tão repentina e precisou segurar na cama. Olhou para o lado e Heitor dormia, fazendo caretas enquanto sonhava com algo, ela também estava sonhando, não lembrava com o que, antes de acordar com o grito, mas, se tivesse mesmo acontecido algo, já havia acabado. Nenhum grito perturbava a paz da noite e apenas uma suave melodia se espalhava pelo ambiente.

A mulher se levantou, ainda um pouco zonza, para procurar de onde vinha o som, mesmo que parecesse sair das paredes. Saiu do quarto, olhando, apenas para confirmar, que seu aparelho de som estava desligado, assim como o tocador de discos. Olhou pela sala, chutou alguns pufes do lugar, olhou por cima dos livros nas estantes e até perto do projetor, que era o que usavam para ver filmes, já que não tinham TV.

Bocejou e, atravessando a sala, foi para a cozinha. Da sala para o pequeno corredor, que separava os dois cômodos, corredor esse que quase desaparecia com o tamanho da porta da cozinha. Maia se sentiu tonta, a dor de cabeça estava ficando mais forte e suas poucas desconfianças da origem da música desapareciam, dando lugar a um sentimento de prazer.

Olhou por trás do balcão e nos armários, já se acostumava com a música, não era de forma alguma agressiva, na verdade, era o contrário. Tão bonita que nem queria mais que parasse, ainda que cutucasse sua cabeça dolorida por ter acordado assustada, de certa a forma sua dor de cabeça entrara em harmonia com as notas. Preparou um chá, reconhecendo que não fazia sentido alguém entrando li ou num dos apartamentos vizinhos, até por ser meio difícil subir doze andares sem ser descoberto.

Já estava aprendendo alguns padrões da música, embora eles nunca fossem iguais, agora ela percebia ter uma voz cantando em uma língua desconhecida. Uma língua forte, com palavras que pareciam, cada uma, contar vários significados. Seu chá ficou pronto e, devagar, ela foi andando e esperando que esfriasse. Saindo da cozinha se via a porta do escritório, abriu, mas não havia nada ali também.

Escutou um som oco e pesado vindo do apartamento de cima, seguido de passos muito pesados e algo se quebrando. Maia se assustou, olhou no relógio da cozinha, eram quase duas da manhã. As paredes eram boas, era difícil conseguir escutar os outros apartamentos e naquela noite a música e agora isso. Voltou a fechar a porta do escritório tão amado de Heitor. Sabia que o namorado riria dela quando soubesse de seu susto na madrugada.

Suspirou e foi até a sala, com a xícara em mãos. Sentou em um dos pufes e bebeu, de olhos fechados, aproveitando a beleza da música, que parecia ter ficado ainda mais intensa. Esperava, também, que nada mais acontecesse no apartamento de cima, se não teria de ligar para o porteiro. A mocinha que morava em cima tinha uma família estranha e extremista, tinha pena da menina.

Mas a verdade era que só a música reinava naquele lugar. Ela imperava absoluta, singular, do tipo que precisava ser ouvida por todas as pessoas. Do tipo que todas as pessoas precisam escutar ao menos uma vez. Uma única vez. Maia terminou seu chá, sua cabeça estava leve, clara. A voz da cantora parecia sussurrar em seus ouvidos todas aquelas belas palavras que ela não conseguia entender. Não soavam palavras difíceis de entender, porém era como se faltasse algo, um detalhe pequeno na cabeça da mulher, que a faria entender tudo.

Era estranho, entretanto palpável, como se além de ser escutava, também oferecesse sabores, texturas, sensações e cheiros. A composição era linda, de fato irreconhecível, nunca tinha ouvido nada parecido com aquilo. Como sentimentos em forma de música. Não, mais que isso, era como ouvir uma história. Imagens vinham em sua cabeça apenas de escutá-la. Imagens maravilhosas.

Foi até sua sala de arte, pegou o caderno de rascunhos e um pedaço de carvão, desenhando o que conseguia, apenas contornos mal feitos, para tentar trabalhar melhor depois, quando tivesse tempo. Desenhou até que seu pulso doía, desenhou até que o caderno acabou, desenhou até o momento em que a música parou. Seu coração doeu por um segundo, como se tivesse saído de seu peito, mas em seguida voltou, mais forte, mais iluminado e mais ambicioso.

Maia sorriu, voltando para o quarto. Observou com Heitor ficava lindo, dormindo de forma inquieta e sem paz. Ele ficava bonito de todo jeito, essa era a verdade, fosse dormindo assim, ou como um anjo, em completa paz. Seu sorriso se alargou, deitou ao seu lado e, então, ele se acalmou, se acalmou quando Maia cantarolou a canção em seu ouvido.

...

Ao voltar para a pequena sala de interrogatório, Mauro desligou o maldito ventilador. Preferia o calor àquele barulho infernal. Suspirou, aproveitando o silêncio por um segundo antes de Carlos aparecer com um pão francês com manteiga. O estômago do investigador roncou. Parar para comer parecia um sonho distante, assim como seus doces na padaria.

O pão não o encheu, todavia ao menos aplacou seu estômago vazio, o que já era algo maravilhoso. Carlos falava do jogo da tarde anterior, antes daquela confusão começar. O time dele havia vencido. Já Mauro pensava na ligação da ex esposa, que havia gritado por ele não poder ir buscar o filho na escola, mas o que ele podia fazer? Não havia como parar os testemunhos naquele horário, as pessoas ali tinham tanta fome quanto ele, além disso seu filho já tinha quinze anos, não era um bebê.

— Ei, chefe, chegou mais um que foi testemunha do primero caso, mando entrar logo?

— Claro, claro. — Mauro se arrependeu no momento que falou, não havia perguntado quem era e queria falar logo com Ícaro, o comportamento no banheiro depois dos comentários insistentes de Eduardo sobre o poema do garoto faziam seus dedos coçarem de vontade para pegar uma pista, esta que vinha precisando há bastante tempo.

Para sua infelicidade não foi o garoto que entrou, nem mesmo sua mãe. Foi o advogado que morava no andar debaixo, Heitor Babenco, mais magro do que alguns meses antes, as roupas estavam largas, ainda que fosse elegante e a aliança não estava mais em seu dedo.

— Vim assim que me ligaram, não terei tempo a tarde para depor, nem amanhã, então, quanto mais rápido, melhor.

Os olhos fundos do homem à frente do investigador o deixaram intrigado, ainda mais quando notou que Heitor havia adquirido o hábito de puxar suas mangas para baixo e as golas da camisa para cima, escondendo tanta pele quanto conseguia com seus trajes profissionais.

— Tudo bem. — Antes de começar as perguntas, Mauro se viu perguntando: — Terminou o relacionamento?

Algo aconteceu no rosto do jovem de forma quase imperceptível, tal foi a velocidade e o controle facial, mas o investigador notou, sem saber, entretanto, qual era o sentimento por trás.

— Não acho que minha vida pessoal seja o interesse aqui. — Heitor sorriu. — Podemos começar, então?

— É... claro, — respondeu Mauro, vendo no pulso de Heitor uma minúscula cicatriz escapar do tecido branco.

Mauro tinha memória fotográfica e não lembrava dela ali da última vez.

Canções Submersas (AMOSTRA)Onde histórias criam vida. Descubra agora