Apoteose

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Parado diante a Catedral,
inda sob o hábito monacal,
Eu não mais me ajoelho;
agora fico de pé e de peito erguido,
abaixo da forte chuva de granizo
E neve de cinzas,
sentindo-me dilacerado pelo cansaço e desonra nesse manso senhorial.
Respiro fundo
e continuo a fazer forças
para levantar a cabeça,
bem como uma pedra,
também uma corcova.
E ele sinto-me transmutar, de camelo, para leão. Estendo os braços
E me atenho a ver as poucas luzes
que insistem em transpassar
as brechas por entre as nuvens pesadas.
Luzes brancas e mortiças essas...

- Do nada me extraio,
e do nada me aproximo,
tornando aflita minha mente;
É aí que está a astúcia,
o sangue dos deuses;
fico angustiado.
Porém aproximo-me de Deus, e torno-me meu próprio; e tão pungente.
Sou metade homem, metade Deus;
que sente medo, temendo me afogado;
O homem teme, e Deus também;
novamente tão profano.
Demônio vou vendo me observando,
também o anjo, que se esgueira de meu enfado.
De todos os círculos do inferno, eu vou caminhando meu espírito;
profanas são as tuas obras,
que me dividem e partem ao meio,
num fractal absurdo;
Quebrando-me
sobre a mim
E à minha natureza nadificante;
obra tua que me afanas.
Sinto-me escorrer o maxilar e o pescoço;
numa raiz suja e liquefeita,
vermelhas caem.
E desse ar pelas alturas tenebrosas,
eu me vi distante: nada sou;
alturas tenebrosas.
Conquanto, tudo posso ser,
e Deus me torno;
no chão o odor, os mortos escorriam;
É por minha finitude que toco o terror;
tenho medo da morte, mas não de morrer.
Minha natureza provém do mito,
do próprio imaginário:
herói trágico.
Faces temerosas
Assombram-me,
e desse peso me refaço,
rumo ao destino: meu próprio querer.
Deixo de ser, deixo de ser;
a contingência é absoluta.
Refaço-me a cada passo.
Se sim ou não,
castigado pelos deuses,
sou o Deus que se arrasta na lama,
Incapaz de compreender
a natureza da natureza,
não ser pelo eterno: que posso.
Desce a mim,
ou deixe que eu suba, enfim, ó Pai Iminente.
Eu o vejo agora, Pai;
mostra-me a lua sangrenta;
eu o vejo agora, Pai,
No Jesus que, agora morto na cruz,
sangra, e mente. -

- Sanguíneos são os teus olhos - disse-me Jesus,
o grito grave - intente!
Unhas quebradas em fractais,
raízes; mãos armadas;
Rasga-me a alma, esfola a dor existente. -

E nada sou,
vejo o tudo que posso ser
mergulhando nas nuvens cansadas;
Carne, ossos, músculos, nervos e sangue,
uivam à chuva, coitados.
Estatuetas vivas
que sofrem o seu não-ser,
cantando arrasadas.

- Se existe apenas o abismo e o vazio...
O que é a vida, senão a própria morte;
Que sou eu - Jesus continuou a me dizer - senão
o próprio vazio.
Sinto frio, pois tudo perdeu o sentido;
Já não vejo amparo num abraço,
Todos estão como eu e tudo se foi perdido.
Procurei onde estava,
Conquanto, só encontrei sangue e músculos;
Ninguém tem acesso a mim,
pois eu não existo,
disso posso assegurar.
Ninguém entende ninguém,
Pois que todos estamos perdidos,
Ninguém é... - Sua voz se perdeu - ninguém.
Não tem nada aqui dentro,
sou uma casca vazia,
Um pedaço vazio de matéria:
Átomos e espaço vazio em movimento,
que se esvazia.
Espaços infinitos de vazio e escuridão
que me atormentam tanto. -

- Um mundo que apodrece - os mortos,
a Jesus continuam cantando -
Que morre e se desfaz.
Sofrimento nos córregos em tons sombrios.
Dormindo... sonhando...
ecoando a morte através dos céus - terminaram chorando.
E vejo em tal canção, enquanto cantam, em quem estás fiando:
Pai Iminente, Senhor das Cinzas e Emissários da avareza.

- Para quem cantas - Deus disse por meio da lua - senão para si mesmo, gritando? -

- Chama o fogo, Pai,
ascende da dor essa pobre alma
que se afoga na tristeza,
Onde as terras transitórias da vida e morte convergem, ordena!
Se cumpre. Aprendi com os peregrinos
a verdade das antigas palavras,
da certeza. - respondi.

Eis que, do fim,
um novo começo;
a nova luz agora brilha amena;
A ouvir os lamentos: torna-se meu chegado.
Onde os deuses Iminentes
levantam de seu sono,
Reavendo todas aquelas falsidades.
Quando a ascensão do fogo é ameaçada,
A tormenta e o furor
tornam-se o sino que traz
do túmulo o jamais requerido:
Todas moscas e varejeiras
das carcaças da verdade renegada.

- Santo das profundezas, aparta-se!
Que aturde os homens em tua empreitada.
Para a tua eternidade, Fernando!
Pobre crivado pelos ferrões dos pequenos
E atordoado pelo zumbido
das moscas venenosas
que tornam a vida limitada.
Apartam-se, legião de mortos vivos!
Apartam-se, truões ensurdecedores!
O momento oprime-o,
e vós o oprime - maldisse o Pai Iminente -
Ascenda, inaceso, e busca tua brasa, tua luz usurpada pelos credores. - terminou.

Às asas
o próprio espírito voava distante,
e a própria verdade aplana.

O que a lua traz consigo,
quando o sino e os lamentos
afundam no pecado,
Rugia bem como um
gutural imerso no mar do mistério,
nunca sendo combatido.
Se do sangue a doença infecciosa tomou conta,
a cura se há encontrado.

Jesus fecha os olhos,
já distante e,
morto na cruz,
sente a brisa fraca mover
os cabelos e escorrer
o sangue sobre o corpo.
Abaixo de seus pés estão
os loucos que gemem recurvados,
cantando sua canção
e ecoando a morte através dos céus.

Eu, porém,
com os braços estendidos
e cantando a mim mesmo
para a mais viva liberdade,
transmuto-me a criança.

Sob as nuvens
que se abrem para o céu alaranjado
e luar vermelho,
que apavora e cresce fervoroso,
ouvindo o som da voz gutural de Deus,
eu faço de mim mesmo,
tornar um Deus.

Danse macabreOnde histórias criam vida. Descubra agora