5 - Peixes

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- Estou fazendo comida meninos. - Minha mãe disse enquanto se dirigia para a cozinha.
Ela parecia muito animada com toda aquela situação, não sabia dizer se era pelo fato de finalmente ter várias pessoas para cozinhar.
Meu pai trabalhava muito tempo fora e isso acabava o fazendo comer onde estivesse, e quando se trata de mim, minha mãe estava acostumada a apenas fazer comida para meus irmãos por quê eu preferia comer besteiras do que comida de verdade.
Comida de verdade seria qualquer coisa que ela pudesse fazer para a gente.
Sem saber o que fazer, apenas observei Jack olhando para nosso aquário de peixes, de certa forma eu o entendia. Aquilo era muito bonito, porém para nossa família era muito especial, foi onde eu tive minha primeira responsabilidade.
Meus pais haviam chegado em casa tarde da noite, percebi em suas mãos um saco plástico com água, dois peixes-dourados nadavam de um lado ao outro.
Obviamente naquele dia eu fiquei muito triste, eu queria um cachorro, ninguém que eu conhecia tinha um peixe ou se tivessem com certeza não teriam coragem de se gabar de ter algo tão besta. De qualquer forma eles fizeram muito bem para mim, era como ter dois filhos, que posteriormente tiveram mais filhinhos.
O que restara agora naquele grande recipiente de vidro, um solitário douradinho, último de sua família, aproveitava as águas enquanto esperava calmamente por sua última ida a superfície para respirar.
- Que bacana. - Jack disse enquanto sua atenção se voltava para mim.
Apenas acenei com a cabeça, para mim eu poderia observar ele o dia inteiro. Desde que ele não percebesse minha presença ali.
Minha primeira reação foi querer se retirar para bem longe, igual eu sempre fazia para evitar momentos constrangedores.
Mas aquela era minha casa, e mesmo assim foi isso que eu fiz.
Passei por ele e comecei a subir as escadas, com os ouvidos atentos aos meus pés na madeira, quando alcancei metade da subida, o mesmo som começou a se repetir atrás de mim.
Indo em direção ao meu quarto, pude ouvir ele falando:
- Você está melhor desde o que aconteceu ontem?
Entrando em meu quarto, levei um grande susto com a tamanha bagunça que ele se encontrava. Antes que eu conseguisse tempo o suficiente para voltar por onde entrei e ir para outro lugar da casa, pude sentir uma força me atingir por trás me fazendo dar um passo a frente.
Quando me virei para ver o que acabou de acontecer, vi ele já dentro de meu quarto enquanto soltava uma leve gargalhada junto a um pedido de desculpas.
- Sou muito avoado, foi mal.
Uma grande sensação de vergonha subiu e tomou conta de mim, tentei pensar em alguma coisa para falar em relação ao estado do lugar mas em vez disso apenas passei por cima dos amontoados de livros e roupas no chão até chegar em minha janela por onde uma doce luz de fim de tarde chuvosa entrava. E junto a isso, o universo lá fora estava gritando em meio ao vento e a água que ao colidir sobre meu vidro, apenas me deixava observar o mundo sob uma camada distorcida que tampava a realidade lá fora.
- Eu amo quando o tempo está assim. - Falei, enquanto tentava observar algo lá fora - Toda vez que chove eu sinto que os céus estão nos limpando de toda a sujeira que fazemos e vivemos, isso me faz ficar feliz e acreditar que um dia as coisas vão mudar.
Meu coração simplesmente parou naquele momento, nem mesmo o som da tempestade que estava chegando pode tampar sua respiração tensa que vinha de minhas costas.
Quando me virei, percebi ele sentado em minha cama a um metro longe de mim.
Seu lábio inferior era devorado por sua boca enquanto atentamente pensava no que eu tinha dito.
- Uau, isso foi profundo. - Surpreso, ele se levantou e começou a caminhar pelo quarto.
Eu quase acreditei que ele havia levado sério o que eu disse, se não fosse a risada que soltou logo em seguida.
Foi ali em que eu senti a maior vergonha de minha vida, tudo que eu desejava para o resto do dia era permanecer quieto e esperar aquilo acabar.
- Eu imaginei você me falando qualquer outra coisa menos isso. -Disse Jack, agora sério novamente - Continua falando mais dessas coisas, você quase nunca conversa, fiquei curioso agora.
Só consegui perceber o tique nervoso que me fazia bater os dedos contra a escrivaninha quando eu percebi que tinha o parado, então confuso comecei a olhar para diversos pontos em meu teto, procurando entender o que ele acabou de me perguntar.
- Eu não tenho mais nada para falar, era só isso mesmo.
Com um grande sorriso ele me observou com um olhar enigmático, meu corpo automaticamente tentou encontrar alguma coisa para se distrair ao redor, um lápis para brincar nas mãos ou o meu celular que eu percebi estar em cima da cama do lado onde ele estava sentado agora.
Tudo ao meu redor parecia ser tão difícil e complexo, nesses momentos eu me sentia ainda uma criança, aquele tipo que precisa de alguém ao redor sempre para segurar na mão e guiar pelo caminho.
- A única parte que eu gosto da chuva é a que eu me molho. - Disse Jack
- Eu nunca andei na chuva - Me virei novamente para a janela - Deve ser frio.
Ele então para ao meu lado, pegando um dos desenhos que eu fiz no começo da semana, a silhueta de uma flor pintada sobre o papel. Uma pequena mancha de tinta estava sobre uma de suas pétalas, como se um pingo de tinta tivesse sido derramado na folha.
- Essa é a flor que tinha me falado? - Perguntou-me enquanto passava o dedo indicador sobre os traços
Me peguei pensando sobre aquilo, não me lembrava desse desenho, e agora que vi, uma estranha sensação bateu sobre mim. Me fazendo questionar sobre tudo que aconteceu nesses últimos dois dias.
É estranho como a vida se desenrola bem em nossa frente, as vezes sentimos estar rebobinando e repetindo o mesmo filme várias vezes.
Todos os dramas e os sentimentos se tornam coisas em que nos acostumamos, chegando até mesmo a perder a sua essência.
Como um primeiro dia de aula, toda a expectativa e os sentimentos que são rapidamente levados embora ao longo da semana ou do mês.
Porém quando o filme tem sua continuação, os sentimentos e as aflições voltam a tona.
E nunca estamos preparados para o que vai vir.
- Não - Falei - Eu a desenhei no começo da semana.
- Você não acabou ela. - Disse Jack, enquanto apontava para as partes em branco.
Enquanto eu olhava para o desenho, uma leve dor desconfortável começou a surgir em minha cabeça.
Toda vez que eu me recordava da flor, eu sentia algo dentro de mim, quase que místico, como se alguém tivesse querendo me dizer algo.
Um trovão ecoou nos céus, em silêncio respeitamos a força que estava pairando sobre o mundo lá fora.
Decidi então fechar as cortinas deixando o quarto iluminado apenas pela luz amena que vinha do corredor.
- Tudo bem contigo? - Jack perguntou
Subi em minha cama, encostando minhas costas na cabeceira da cama colocando o travesseiro sobre meu colo.
- Até que sim, tirando a fome. - Falei
- Sua mãe está fazendo o que?
Olhei para ele, indicando com a cabeça para ele se sentar na cama também.
- Comida - Respondi
Enquanto colocava seu peso sobre o colchão, pude ver seu sorriso novamente.
Eu sei que pode parecer estranho, mas isso me atingia de uma forma imensa.
A cada sorriso eu percebia mais o quanto ele era bonito.
- Mas qual comida? - Perguntou novamente
Com um sorriso bobo no rosto eu respondi:
- Cachorro-Quente.
- Vim no dia certo então. - Ele respondeu.
A lembrança de ele ter ficado no hospital junto a minha mãe veio em minha cabeça.
- Conversou muito com minha mãe?
Ele passou então a encarar suas mãos, nunca tive uma oportunidade de notar a força de seus braços igual a que me surgiu nesse instante. Suas veias se destacavam por todo o seu braço, grandes e relevadas. Suas mãos eram ainda maiores, então ele voltou a falar enquanto eu comparava nossas mãos.
- Ela me disse bastante coisa de ti, que nunca teve amigos e que estava feliz de saber que eu era um agora. - Disse envergonhado, olhou para mim novamente com aquele mesmo sorriso e continuou - Mal sabe ela que a gente se conhece há 3 dias.
Me rendi a aquele sorriso, mesmo em meio a vergonha dele saber que eu nao era um cara com uma grande vida social, acabei deixando o meu sair para fora também.
- 3 Dias, porém muitas histórias. - Indaguei
- Sim. A única coisa que não tivemos tempo ainda foi para se conhecer mais.
Aquilo era verdade, eu nao sabia nada sobre ele, já talvez ele soubesse algumas coisas sobre mim por causa de minha mãe.
- Ok, deixa eu ver o que perguntar - Falei, enquanto pensava o que falar - Faço a menor ideia do que perguntar. - Continuei
- Vou falar de minha família então. - Ele disse - Sou filho único, meu pai é policial, apenas eu moro com ele por causa de minha mãe que nos deixou.
Instintivamente minhas sobrancelhas se ergueram junto a minha boca que se retraiu para o lado.
- Nao precisa ficar assim, eu já acostumei com a ideia. É só questão de tempo mesmo pra aprender a viver com isso.
Naquele momento eu passei a me odiar um pouquinho por não saber o que dizer, como sempre. Porém ainda assim amava a sua doce maneira de lidar com as situações, sempre bem humorado e disposto.
Eu me sentia bobo perto dele.
- Você precisa de um peixe, a dor de tu ter um te faz esquecer as outras.
Ele me olhou, pensativo sem entender o porquê.
- A única coisa que você pode fazer por ele é cuidar da água e dar ração. - Expliquei
Ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, indignado enquanto ria de leve.
- Vou comprar um peixe. - Jack disse, convicto.
- William! - A Voz rouca navegou pela casa a estremecendo como um rugido.
E foi bem ali que tudo tinha começado de volta, os passos pesados de meu pai na escada começaram a ser audíveis para qualquer um que estivesse a 20 metros da escada. Parecia que ele estava quebrando os degraus ou derrubando martelos por todo o caminho.
Levantei rapidamente da cama e fui até a porta a fechando com um grande estalar, pedi para que Jack ficasse no meu lugar segurando a porta para que eu pudesse achar as chaves.
Sem questionar ele se movimentou agilmente tomando o meu posto.
- Você acha que é fácil ficar gastando nosso dinheiro assim? Indo em médicos, quebrando coisas na escola, comprando tinta de cabelo na internet com o meu cartão. - Seu resmungar estava se aproximando lentamente da porta, estava quase sem tempo.
Olhei de baixo de minha cama onde eu achava ter deixado as chaves da última vez em caso disso ocorrer novamente. Porém não havia nada lá.
- Pintar o cabelo... - Disse enojado - Você me disse que era para comprar tinta, e eu achei que era para essas merdas desses desenhos e não para seu cabelo. Tá virando mulherzinha já?
Ali ele estava infelizmente, sua respiração intensa enquanto se movimentava de um lado para o outro em frente a minha porta, me deixava ainda mais desesperado com tudo aquilo.
Eu não sabia que ele iria chegar mais cedo hoje.
Meus olhos com sorte viram o pequeno chaveiro que saltava de baixo de uma meia no chão, peguei-a e fui até a porta nos trancando para dentro.
- Querido, andou bebendo de novo? - A voz doce de minha mãe podia ser escutada dali dentro, quase que inaudível pelo seu tom baixo de voz.
Minhas mãos estavam sobre minha cabeça novamente, eu me sentia totalmente diferente do estado feliz que eu estava a alguns minutos atrás.
Foi até mesmo surreal imaginar que a sensação boa tinha ido embora antes mesmo de eu a conseguir descrever ou recordar em minha mente.
- ... Temos visita hoje... Nao precisa ficar assim, depois a gente conversa. - Ela continuou
Envolto do silêncio do quarto, ouvimos mais uma vez o ranger das escadas.
Até que tudo ficou quieto e o som da chuva voltou a ocupar o vazio que havia batido.
Jack estava sem expressão naquele momento, seus olhos estavam me fitando como se quisessem dizer alguma coisa.
- Desculpa por isso - Falei enquanto andava novamente até a porta para a destrancar - Você pode ir embora se quiser...
Sua mão então tocou a minha, me impedindo de continuar girando a chave.
- Aquele era o seu pai? - Me perguntou
Eu podia sentir meus olhos se encherem de água, como se eu estivesse prestes a surtar.
Era comum esse sentimento em mim, de vergonha e tristeza, eu sentia o mundo se virar para mim enquanto eu era o único pistoleiro em meio a um exército inimigo prestes a se confrontar.
Sem olhar para seu rosto eu o respondi:
- Sim.
Então, após alguns segundos onde permanecemos imóveis, ele deslizou lentamente seu dedo para cima e para baixo sobre as costas de minha mão e então disse:
- Eu sei exatamente como você se sente.

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