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D. Úrsula tinha já confiado ao velho capelão a proposta de Camargo. Consultado por
Estácio, respondeu o padre:
— Consulte as suas forças e a responsabilidade do cargo, e escolha.
— Já escolhi, disse Estácio; pedia-lhe conselho para apoiar melhor a minha própria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos? Decidi que não aceito a candidatura. A vida política é turbulenta demais para o meu espírito. Estou pronto para a ação, mas não há de ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar à Câmara, além de algumas prerrogativas e um papel acessório? Eu só me meteria na política se pudesse oficiar; mas ser apenas sacristão.
— Entre o oficiante e o sacristão, observou Melchior, está o pregador, que é cargo nobre e influente.
— Mas o tema do sermão, padre-mestre? retorquiu Estácio rindo; falta-me o tema.
D. Úrsula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público em favor do sobrinho, viu naquelas razões um pretexto ou uma puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o sobrinho para que refletisse maduramente, antes de qualquer resposta definitiva. Estácio prometeu como prometera ao médico, por simples condescendência; mas sobretudo para pôr termo ao assunto e ir saber a causa do sorriso quase imperceptível que viu roçar os lábios de Helena. A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janelas; Estácio foi até ali.
— Adivinhei, pelo seu sorriso, disse ele, que tudo isto lhe parece pueril, e que eu faço bem em não aceitar o que se me oferece.
Helena olhou um pouco espantada para ele, mas respondeu com tranqüilidade:
— Pelo contrário, penso que deve aceitar. Além de haver consentimento de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugênia.
Era a primeira vez que Helena aludia ao amor de Estácio, e fazia-o por modo encoberto e oblíquo. Estácio escapou dessa vez à regra de todos os corações amantes; resvalou pela alusão e discutiu gravemente o assunto da candidatura. Era pesado demais para cabeça feminina; Helena intercalou uma observação sobre dois passarinhos que bailavam no ar, e Estácio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores.
Durante dois dias não saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma página, colocá-los nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliófilo. Helena ajudava-o nesse trabalho, — um pouco parecido com o de Penélope3 — porque a ordem estabelecida ao meio-dia era às vezes alterada às duas horas, e restaurada na seguinte manhã. Estácio, entretanto, não ficava todo entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado com que ela o auxiliava. Helena parecia não andar; o vulto resvalava silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo às indicações do irmão, ou pondo em experiência uma idéia sua. Estácio parava às vezes, fatigado; ela continuava imperturbavelmente o serviço. Se ele lhe fazia algum reparo, a moça respondia erguendo os ombros ou sorrindo, e prosseguia. Então Estácio segurava-lhe nos pulsos e exclamava rindo:
— Sossega, borboleta!
Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na intimidade mais doce, e que a
3 — Esposa de Ulisses. Estando este ausente, Penélope recusa vários pretendentes com a promessa de só se casar quando terminasse a toalha que vinha bordando. Contudo, para afastá-los, desfazia de noite o que bordava de dia.
recíproca afeição ia excluindo toda a preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as proporções de voto preponderante.
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Helena ♦ Machado de Assis ♦ Caí no Enem!
RomanceCaí no Enem! Siga o meu perfil ♡ Helena é uma obra de Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. O livro foi publicado em 1876 e faz parte da primeira fase literária do autor. 55 mil palavras