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Aquele dia foi marcado no calendário de Mendonça com letras de ouro e cetim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Ele viveu essas horas todas num estado de sonambulismo e êxtase. Tencionava referir tudo à mãe, logo que entrou em casa ao meio-dia; mas não se atreveu, porque ele mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas asas de uma quimera. De noite voltou a Andaraí; achou em Helena o mesmo modo afetuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva, nenhuma contemplação namorada; um meio-termo que o continha a ele próprio, e não era menos aprazível ao coração. A nova situação era, entretanto, sensível, porque os vigilantes de fora trocaram entre si olhares cheios de graves descobertas; um deles, o coronel-major, chegou a proferir uma alusão, que os interessados fingiram não perceber.
Quando Mendonça chegou à casa nessa noite, ia mais que nunca cheio de comoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas aí entrou, pareceu-lhe transformada por uma vara mágica; viu-a povoada de seres fantásticos e rutilantes, que iam e vinham do Céu à Terra e da Terra ao Céu. A cor deste era única entre todas as da palheta do divino cenógrafo. As estrelas, mais vivas que nunca, pareciam saudá-lo de cima com ventarolas elétricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e despeito. Asas invisíveis lhe roçavam os cabelos, e umas vozes sem boca lhe falavam ao coração. Os pés como que não pousavam no solo; ia extático e sem consciência de si. Era aquele o galhofeiro de há pouco? O amor fizera esse milagre mais.
Um dos teatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que aliás expirava de parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de apalpar a realidade das coisas, tão quimérico se lhe afigurava tudo o que se passara desde manhã.
Um espectador, o filho do coronel-major, viu-o a alguma distância e foi sentar-se ao pé dele.
— O senhor que tem melhor vista, disse o acadêmico, desengane-me; aquela moça que ali está, naquele camarote, não é a andorinha viajante?
— A andorinha viajante? repetiu Mendonça, olhando para ele; que quer dizer esse
nome?
— É a alcunha da irmã de Estácio. Será ela que está ali, com uma senhora idosa?
— Mas por que lhe chamam assim?
— Eu sei! Naturalmente porque sai à rua todos os dias. Na verdade, é um passear! Mal amanhece, lá vai trepada no cavalinho, com o pajem atrás...
— Quem lhe pôs essa alcunha?
— As alcunhas são como as mofinas: não têm autor.
Caíra o pano; Mendonça despediu-se ali mesmo e saiu. Na rua repetiu mentalmente as palavras do jovem acadêmico. Ao cabo de alguns minutos, sorriu; compreendera que, apenas suspeitada a sua felicidade, já a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os ombros, resoluto a suportar tranqüilo essa lívida companheira do êxito.
Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvera a ocupá-lo exclusivamente. Só, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos daquele dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com alguém, escreveu uma longa carta a Estácio, narrando-lhe toda a história do seu coração, as esperanças e a pronta realização delas.
A alma derramou-se no papel impetuosa e exuberante. O estilo era irregular, a frase incorreta; mas havia ali a eloqüência e a sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia dar ao amigo, logo que ela lhe chegasse às mãos, levando a notícia de que os vínculos atados na aula iam apertar-se na família.
"Vem quanto antes, dizia ele ao terminar a missiva; tenho ânsia de abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fará o mais feliz dos homens!"
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Helena ♦ Machado de Assis ♦ Caí no Enem!
RomanceCaí no Enem! Siga o meu perfil ♡ Helena é uma obra de Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. O livro foi publicado em 1876 e faz parte da primeira fase literária do autor. 55 mil palavras