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— Seu pai, continuou Salvador dirigindo-se a Estácio, que, para acabar de compor o rosto, tinha ido até à janela e voltara a sentar-se, — seu pai era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Ângela, não me traiu, porque não me vira nunca; não contribuiu diretamente para a traição dela, porque supunha cortadas nossas relações. Soube depois que Ângela, quando eles se apaixonaram um pelo outro, lhe ocultara completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim. Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido. O conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma sugestão de amor ou um esquecimento; foi, talvez, um modo de respeitar-me; no segundo caso, houve cálculo: era o de redobrar o afeto que o conselheiro tinha a Helena. Assim aconteceu, porque o conselheiro sentiu-se pai de Helena, e assumiu esse caráter desde aquela tarde. Do contrato, feito ali entre o homem e a criança, cumpriu ele todas as cláusulas com generosa pontualidade. Pode crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez, passando por uma litografia, vi um retrato dele; comprei-o e conservo-o ali ao lado do de Helena.
Melchior e Estácio olharam para a parede, onde pendiam dois quadrinhos, ainda cobertos, conforme Estácio os vira, no primeiro dia em que ali foi.
— Os meses e os anos passaram, continuou Salvador. Helena deu entrada em um colégio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O conselheiro a levou ali, dando-a como órfã de um amigo de Minas; Ângela, que se dera por sua tia, ia buscá-la aos sábados. Omito mil circunstâncias intermediárias, e as vezes, poucas, em que pude ver minha filha, de passagem e a ocultas. Se o tempo houvesse produzido em mim os seus naturais efeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade, é possível que eu achasse meio de empregar-me no colégio ou nas imediações, a fim de ver mais freqüentemente Helena. Mas eu era o mesmo; passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a cor, e eu era o mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena podia reconhecer-me; e eu faltava à convenção tácita que fizera com o conselheiro. Um sábado, porém, tinha Helena doze anos, vindo ambas do colégio, parou o carro defronte do Passeio Público. Vi-as descer e entrar. Levado por um impulso irresistível, entrei também. Queria contemplá-las de longe, sem lhes falar; mas a resolução estava acima das minhas forças. Que pai não faria outro tanto? No lugar mais solitário do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não reconhecer-me logo; mas tentou um pouco, recuou espavorida e agarrou-se à mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava ali um pai, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia afastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar à mãe: "Papai?" Voltei-me. Ângela envolvera o rosto da criança entre os vestidos. O gesto equivalia a uma confissão; mas esta foi ainda mais clara quando a mãe, cedendo à boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os ombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, fitou-a e fez com a cabeça um gesto afirmativo. A menina não exigiu mais; correu para mim e atirou-se menos braços. Ângela não se atreveu a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrifício falavam em meu favor. Abracei Helena e beijei-a como doido. Ângela interveio: "Basta!" disse ela. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua. Apertei-a maquinalmente; meus olhos estavam pregados na criança. Era tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabelos enlaçados com fitas azuis, um chapelinho de palha e os pezinhos calçados com botinas de seda! "Fez bem, disse eu a Ângela, depois de alguns instantes; deu-lhe um pai melhor do que eu." Reparei então que ela própria se transformara; trajava com elegância e estava superiormente bela. A abastança aperfeiçoara a natureza. Olhei-a sem inveja nem cólera, — mas com saudade, — dessa vez deliciosa, porque rememorei os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um pecúlio para os que já não esperam nada do presente ou do futuro; há ali sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo. "Fez mal", disse-me ela baixinho. E suspirou. "Sei que morri, disse eu, e não pretendo ressuscitar." Depois voltei-me para Helena: — "Minha filha, faze de conta que me não viste; morri para ti e para o mundo. Teu pai é outro. Prometes que não dirás nada?" Helena fez um leve sinal de cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quisesse ser vista de Ângela. Nesse simples gesto reconheci que ela ia obedecer-me; mas a tristeza que lhe ficou, foi o castigo de sua mãe. Pedíamos à natureza mais do que ela podia dar.
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Helena ♦ Machado de Assis ♦ Caí no Enem!
Roman d'amourCaí no Enem! Siga o meu perfil ♡ Helena é uma obra de Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. O livro foi publicado em 1876 e faz parte da primeira fase literária do autor. 55 mil palavras