A ordem acalma.
Não era uma coisa que Dandara pensava, antes de tudo acontecer. Mas antes de tudo acontecer Dandara era uma garota tão diferente que nem parecia que toda a mudança ocorreu em menos de trinta dias. Por isso, até ela se assustava quando precisava manter as canetas retas sobre a mesa, mesmo antes da aula começar, só para tentar se acalmar.
Ela arrumou pela décima vez, aproximando seu rosto das quatro canetas dispostas sobre o caderno fechado, para ver se estavam retas mesmo. Pelo olhar também conferiu o estado de Bernardo sentado ao seu lado, mas ele parecia num estado tão catatônico, encarando um ponto fixo que provavelmente não existia, que se achou a procura de ordem confusa, nada falou.
Não que seu amigo falasse muita coisa desde o Incidente.
Não que nenhum deles falassem.
Talvez porque aquele grupo só existisse justamente por causa da garota que se foi, agora que ela não estava entre eles unindo-os, tudo ficou tão esquisito que nem sentar juntos eles conseguiam.
Dandara deu um pequeno sorriso ao conferir a ordem das canetas e, fosse porque sorriu, fosse porque a porta se abriu produzindo uma brisa fria ou fosse porque Bernardo pensou em algo, o corpo do garoto tremeu. Ela esticou a mão, antes que percebesse, e tocou a mão dele pela segunda vez no dia.
De todos os integrantes, Bernardo era o que estava pior. Quer dizer, ela tinha toda a questão de deixar tudo em ordem. Gabrielle era um caso perdido que ela desistiu de tentar alcançar – todas as vezes que Dandara tentou se aproximar foi recebida por respostas mal-humoradas e ataques gratuitos. Ela até entendia – era a melhor amiga de Gabi que morreu, afinal.
Então, seu corpo tremeu, porque não pensava naquela palavra. Morte era uma coisa tão... Eles só tinham dezesseis, dezessete anos. Antes de tudo acontecer, morrer era algo tão distante que nenhum deles conseguiam pensar. Então, aconteceu. Dandara pressupunha que era assim mesmo que as coisas aconteciam na vida: quando ninguém estava esperando. Ela só não esperava que aquele fato ocorresse tão cedo para todos.
Bernardo reagiu dois segundos mais tarde do que deveria, mas ele estava sempre reagindo às coisas mais devagar que todos os outros. Não era algo para se preocupar. Os dedos do garoto, sempre calorosos, agora eram quase frios, entrelaçaram-se com os dela e Dandara arriscou um sorriso, jogando a trança para a frente dos ombros com a mão livre.
Então, antes que ele reagisse outra vez, algo se chocou contra o ombro dela, de maneira que um gemido escapou de sua boca. O caderno foi deslocado, as canetas embaralharam-se e os olhos da negra encheram-se de lágrimas, no instante em que ela mordeu o lábio com força para evitar gritar.
Bernardo soltou a mão tão rápido que Dandara olhou primeiro para ele, para depois encarar a razão de toda a bagunça.
Ele estava com os olhos quase claros arregalados e as sobrancelhas arqueadas, numa careta que Dandara sempre achou fofa, mesmo antes de. Seu melhor amigo era mesmo muito fofo – era tão fácil gostar dele quanto odiá-lo e ninguém além de Dandara sabia disso. Bom, pelo menos ninguém vivo.
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Mil Voltas de Saturno
Teen FictionEntre risadas, cafés e alguns acordes, Carol, Bernardo, Dandara, Gabi e Léo fundaram a banda Mil Voltas de Saturno, numa despretensiosa tarde de domingo. Mas o sonho, tão bobo para adolescentes, ganhou o Brasil inteiro e, em poucos meses, os jovens...