Bernardo caminhava encarando o cadarço de seu tênis, que estava desamarrado e sujo, enquanto pensava que a vida era mesmo uma coisa estranha. Quatro meses atrás ele jamais sairia de casa com o cadarço sujo. Nem com o tênis sujo. Na verdade, não usaria bastante um tênis para sujá-lo. Quando ocorresse, venderia no brechó da esquina e guardaria o dinheiro para comprar os produtos de manutenção do seu violão.
Agora seu violão estava esquecido no canto do quarto enquanto seu tênis tinha várias marcas de barro espalhado no pano branco. E ele não tinha nem coragem de se abaixar para amarrar o cadarço sujo. Não por nojo, embora o adolescente tivesse isso em algum ponto seu. Mas, simplesmente, porque só continuar andando já era uma dificuldade e tanta para ele parar, agachar, amarrar, levantar e voltar a andar. Só de pensar em tudo isso o garoto já estava cansado.
Viver era um tanto quanto exaustivo.
Pensar nisso fez a mente dele se abrir para outra coisa que não queria pensar: Carol. Era uma frase típica dela, porque apesar de sorridente para quase todo mundo, Carol sempre teve uma certeza muito profunda de que viver cansava. Por isso ela passava muitos momentos imóvel na sua cama, só respirando, mantendo-se inerte tal qual um celular quando estava carregando na tomada. Uma analogia e tanta para se fazer antes das sete horas da manhã, Bernardo admitia. Mas esse era o problema dos pensamentos: se você não toma cuidado com o caminho que está tomando pode nunca mais chegar a uma conclusão que deixe você em segurança.
Pensar em Carol era o oposto da segurança.
Mas, agora que começou, não conseguia parar.
Bernardo levantou os olhos bem a tempo de ver seu ônibus passar. Merda. Teria que esperar pelo menos mais quarenta minutos. E um horário inteirinho de matemática perdido. Seu professor ia adorar isso. O diretor também. E com certeza as notas melhorariam sem nenhum esforço.
Quando foi que a sua vida começou a dar tão errado, afinal?
Foi antes de tudo – ele sabia. Ou talvez nunca tivesse mesmo dado certo. Bernardo era o tipo garoto que tinha um plano muito objetivo de como conquistar o que sonhava desde a infância: dinheiro. Claro, nunca havia passado fome, mas a possibilidade real disso acontecer era bem forte em sua família para que desprezasse a necessidade de ter dinheiro guardado. Por um tempo, pareceu que o garoto da periferia da cidade-satélite de uma pequena capital brasileira poderia mesmo reverter a estatística: nada de passagens pela polícia, nada de consumo de drogas, nada de problemas. Apenas o garoto com notas excelentes causando orgulho e sorrisos dos pais.
Talvez o problema tivesse sido alcançar seu sonho.
Talvez sonhos não existissem, no fim das contas – fosse só uma forma mais colorida de narrar um grande pesadelo.
— Ei! – a voz rouca e feminina o tirou de seu próprio fluxo de pensamento sem sentido naquela hora da manhã e ele piscou, abaixando o rosto para encarar primeiro o carro, depois a cabeça posta para fora da janela com um sorriso grande demais para as quinze para sete da manhã. – Entra que te damos uma carona.
Bernardo balançou sobre o próprio pé, refletindo por um segundo. Se chegasse de carona com a aluna nova no Magna seria o motivo da fofoca de toda a semana, ele tinha certeza. Mas se não pegasse a carona talvez nem conseguisse chegar na escola.
— Tic-tac – o motorista falou, provavelmente irmão de Analua, refletiu Bernardo, ao perceber como os dois se pareciam.
Soltando um suspiro por saber que era uma péssima decisão – apenas mais uma das milhares de péssimas decisões que o garoto era capaz de tomar – Bernardo abriu a porta e entrou no banco de trás, encolhendo-se no canto quando os olhos amendoados do cara da frente procuraram por ele no retrovisor.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Mil Voltas de Saturno
Novela JuvenilEntre risadas, cafés e alguns acordes, Carol, Bernardo, Dandara, Gabi e Léo fundaram a banda Mil Voltas de Saturno, numa despretensiosa tarde de domingo. Mas o sonho, tão bobo para adolescentes, ganhou o Brasil inteiro e, em poucos meses, os jovens...