EPISÓDIO XVII - Sangues & Dores

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Bernardo não queria ter saído da cama naquele dia.

Se o adolescente parasse para refletir, notaria que sair da cama era uma coisa que, muito antes da morte de Carol, não era algo que queria fazer. Mas a característica dele não era ser autorreflexivo, como sua melhor amiga, mas um mentiroso compulsivo. Era por isso que continuava seguindo em frente. Era por isso que fingia que estava tudo bem. Era por isso que, depois de quinze minutos perdido, encarando o pequeno mofo que ganhava o teto do seu pequeno quarto, e alguns resmungos de seu pai lembrando que ele não tinha direito de falhar mais – não no tom de recriminação, mas no tom óbvio de uma família que quase sempre terminava o mês no limite do vermelho – ele colocou o uniforme amassado do Magna, o tênis sujo e marchou para a escola, como se ainda tivesse algo dentro dele que o fizesse realmente ir em frente.

Ele até gostava das aulas daquele dia – a maioria era de exatas, sua especialidade, apesar das últimas notas baixas. E a parte da tarde era focada em músicas, então costumava ter sido sua sequência preferida. Exceto pela última aula do dia que ele nunca gostou muito – teatro, para o garoto que mentia tanto, não era sua paixão (uma ironia e tanta, mas Bernardo era mesmo isso, uma sequência de ironias quase engraçadas), tinha tudo para ser um dia bom.

Exceto que havia a última aula.

Bernardo sabia que daria merda assim que o professor avisou que seria dinâmica. Piorou quando ele disse que era performance. Não houve uma só performance no Magna que tivesse terminado bem. Por alguma razão, os humores e estados de espíritos dos adolescentes se revoltavam com qualquer ação e quase sempre saía briga, choro e muito, muito descontrole. Com o tanto que Bernardo batia na borda do limite, qualquer mísera coisinha poderia arrancá-lo de vez do eixo. E jogá-lo sem volta naquele buraco que ele só encarava, refletindo se pular era a melhor solução.

— Ás vezes eu tenho a impressão que todas as aulas de teatro estão nos forçando a falar o que não queremos – resmungou Dandara ao seu lado, depois que o professor pediu para eles se dividirem em dupla.

Bernardo não respondeu, mas concordava.

Essa era a parte boa de ser amigo de Dan desde a infância: ele não precisava falar para que se entendessem. Cresceram juntos. Aprenderam juntos. Se divertiram e caíram nas mesmas brincadeiras. E nas não-brincadeiras, também, sempre juntos. Eram uma dupla diferente do que se costumava ver retratado por aí – era ele, o cara branco de olhos claros, o filho da empregada. Seu quarto era menor do que a dispensa da casa de Dandara; o quarto de casal de seus pais não era maior do que o quarto de empregada onde sua mãe dormia, vez ou outra, quando o trabalho passava o último horário de ônibus.

Ele não se importava com a discrepância. A família de Dandara lhe deu oportunidades que não teria, além de um emprego bom para sua mãe. Era por causa deles que Bernardo conseguira a vaga no Magna. Era por causa deles que ele também fez um ano de cursinho de inglês. Foram eles quem lhe presentearam com o violão que tanto amava, agora esquecido no canto do quarto, pegando poeira e sem cuidados. E também era por causa deles que ele tinha Dandara – a última boia que o impedia de se afogar.

A garota era um anjo. Seu anjo. A melhor amiga que alguém poderia ter. A sua melhor amiga. Bernardo poderia construir milhares de ensaios sobre ela, e ainda assim não seria o suficiente por tudo que ela já fizera pelo garoto.

Então, até ali, quando ele encarava os olhos escuros da amiga, o extremo oposto da sua própria cor de olho, tudo estava bem.

O problema começou quando Thales mandou colocar a venda. Ele sabia que ia dar merda. Eram vinte alunos, mas ele tinha certeza que ia acabar na frente da pior escolha para um momento tão intenso como aquele.

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