9. RARIDADE PARA OS RAROS

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Talon 

Os cheiros de mofo, poeira e esquecimento quase me fizeram estremecer. As estantes se enfileirando até depois da escuridão à minha frente e mesmo que lá fora o sol iluminasse todas as superfícies imagináveis, aqui era diferente, dentro da gruta logo atrás da cachoeira a biblioteca milenar estava escondida.

Esse era o meu lugar preferido para ficar completamente sozinho, quase ninguém se dava ao trabalho de vim até aqui.

Realmente, esquecida. Zorik tinha me levado até ela uma única vez, mas isso foi suficiente para que minha mente lembrasse o caminho. Sendo sincero comigo mesmo, eu não sabia o que estava procurando, muito menos o que eu queria achar.

Eu só precisava me afastar de Ambelle, de novo. Meu coração ainda estava pesado, a sensação dolorida de quando percebi que a trilha do cheiro dela a levava para além dos limites das nossas terras.

Sentei em uma das mesas de leitura dispostas ali, as pilhas e pergaminhos dispostos com temas diversos. Os pergaminhos estavam incrivelmente bem conservados, se fosse considerado a situação do local onde se encontravam, assim como os livros com suas capas de couro grossas, letras douradas curvadas em sua lombadas. 

A curiosidade sobre o cavalo negro com Ambelle lhe deu um propósito ao tempo ocioso que teria pela frente. Asterixs, os cavalos lendários, indomáveis e intratáveis porém aquele cavalo estava paciente ao lado dela e se despediu com uma bela reverência quase como se tivesse uma consciência pensante. Talvez tivesse mesmo.

Coloquei com cuidado a vela, que trazia comigo, apoiada sobre a mesa de madeira velha, meus olhos passaram rapidamente sobre os objetos ali espalhados mas não dei muita importância. Sabia que ali não havia nada sobre o que eu procurava.

Meus pensamentos se voltaram para Ambelle mais uma vez, nosso último encontro, quase a beijei. Suspirei pesadamente. Eu sabia, sabia que era errado, sabia que ela estava comprometida, sabia que deveria me manter distante. Mas quando seu cheiro estava próximo a mim, era simplesmente inevitável, as coisas só aconteciam antes que eu tivesse consciência disso.

E depois disso, eu precisava lidar com minha culpa e frustração.

Richard era um idiota, mas era noivo dela. E eu deveria me manter distante. Éramos completamente diferentes, em crenças, até mesmo as tradições, e mesmo que a lógica gritasse essa incompatibilidade  quando estávamos perto fisicamente éramos muito compatíveis, seu corpo respondia ao meu mesmo que não percebesse.

"Sabia que cedo ou tarde o encontraria aqui." Dante falou tirando meus pensamentos de foco bruscamente. "A última pessoa que veio aqui foi..."

"Zorik," balancei a cabeça em concordância. Aproximando-se da mesa ele passou os dedos sobre a capa de um livro que tinha posição de destaque em uma das pilhas de livros. Os detalhes eram engraçados, como se tivessem sido feitos a mão.

"O primeiro lobo," Dante murmurou se aproximando de mim. "Foi ele que escreveu este livro, deixou-o sob o cuidado de um grande amigo dele, a partir de então, todos os Alfas passaram a registrar suas experiências vividas como lobisomens."

"Por quê?" Segurei o livro, erguendo-o em frente ao meu rosto. "Toda essa coisa de lobo não é igual? De tempos em tempos eles aparecem, todos os conhecem porque são sempre iguais, e despertam para a mesma ameaça."

Dante riu, então passou o dedo por toda a extensão do nariz. Era uma mania que ele tinha, eu não sabia para que raios isso servia, mas ele fazia.

"Não, meu amigo." Tentei ocultar minha surpresa. Era uma grande honra ser chamado de amigo por um ancião. "A sua forma de pensar, é completamente diferente do que um dia foi a dele..." Ele tocou a capa do livro que eu segurava para enfatizar o que dizia. "Os seu problemas, as suas dúvidas, não são as mesma, alguns dos alfas jamais acharam suas verdadeiras companheiras. Alguns se conformaram com isso, ou saíram em busca dela e nunca voltaram."

Ele iluminou uma parte das estantes ao seu lado, olhando os livros dispostos e pegou um de capa marrom.

"Como alfas podem abandonar a suas alcateias para encontrar uma pessoa que talvez nem exista?" Perguntei cético. 

Era uma pergunta retórica, eu sabia exatamente o que ele me diria.

"Talon, você é jovem, começou tudo isso agora. E graças a esses ex-lobos que escreveram sobre eles mesmo, você não está completamente sozinho. Por mais que se sinta assim..." 

"Eu não me sinto sozinho." Afirmei, porém ele me ignorou.

"Você tem conhecimento, tem algo para comparar as suas emoções, por mais que não pensem do mesmo modo, um dos seus medos podem ter sido vivido por um desses outros alfas também." Ele abriu cuidadosamente na primeira página do livro que pegou. "Tem relatos da dor, do vazio que pode sentir sem sua companheira, e também da felicidade que pode sentir com ela. O medo de tomar decisões, e a alegria por ter tomado decisões certas. Por mais que eu esteja encarregado de guardar estes livros, não posso lê-los, já que não carrego o sangue alfa... Mas você..."

"Eu não sou um alfa." Murmurei amargamente. "Não sou um lobisomem, acredito no que Zorik acreditava, você sabe que ele está certo."

Os pequenos fragmentos de memória de antes de Zorik me encontrar eram amargos mas inegáveis.

"Eu acredito que as coisas podem mudar. E que devemos ter a mente aberta para aceitar mudanças." Ele sorriu. "Eu não vi os últimos lobos, meu pai também não viu, como posso ter certeza que eles não eram iguais a você?"

Olhei-o por longos minutos, enquanto sua sobrancelha continuava arqueada e seus olhos se mantinham acolhedores. 

"Sua boa vontade em manter todos encaminhados é muito irritante às vezes." murmurei. Ele riu e colocou o livro que segurava a minha frente.

"Não vou ler esse livro," falei, mas palavras saíram baixas demais até pra mim mesmo. Meus olhos encontrando a imagem pintada de um cavalo curvado em uma reverência.   

"Se não achar aí o que espera," ele moveu os braços indicando as infinidade de prateleiras. "Há todos esses outros, basta buscar a resposta para a pergunta que realmente deseja saber."

O eco dos seus passos martelou em minha mente mesmo depois de sua partida.

Sob a pintura que tomava metade da página estava: O cavalo da liberdade se curva diante de uma verdadeira luna.

O senso de humor do destino poderia ser realmente cruel.

Passei as páginas rapidamente, vendo as minúsculas letras cursivas ficarem mais agressivas, uma página depois um desenho que tomava duas páginas me parou.

Um casal era representado ali, a vivacidade dos detalhes eram incrível, eles pareciam estar sozinhos em um lugar pequeno e escuro, ambos se encaravam e pareciam... felizes?

O que mais me chamou a atenção além dos detalhes do desenho, foram as cores, a maior parte dele tinha riscos em preto, mas ao redor da mulher os traços eram vermelhos. Abaixo havia algumas linhas rabiscadas quase ilegíveis.

É  uma magia grandiosa que vai chegar, ela pode tomar conta de sua mente, corpo e a alma. Vai transformá-lo, moldá-lo para o momento final, vai preenchê-lo com um único propósito. E com isso será  consumido tudo em você, exceto por aquele comando mais básico, e a necessidade.

Que os deuses tivessem piedade, porque eu já estava a um passo de enlouquecer.

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