Luna era uma adolescente absolutamente incomum, fosse pela história de vida cheia de altos e baixos e mais baixos ainda ou por, até mesmo, seu nome: Luneta.
Que legal ter sido nomeada através de um objeto que olha para as estrelas! Na Europa, seria...
"A única verdade que realmente sei: Os seres humanos me assombram" — Markus Zusak, A menina que roubava livros.
- Eu já estava de saída. – Afirmei, forçando meu melhor sorriso. – O show aqui acabou.
E era bem verdade.
O retorno para a escola foi tranquilo. Estavam todos cansados demais do passeio para fazer bagunça, então, dormimos na maior parte do trajeto. Começou a chover quando nos aproximamos da Zona Norte. Um pequeno lembrete do quanto o nosso mundo real era triste e cinza e o deles, colorido e alegre.
Não consegui parar de pensar no garoto esnobe e no emblema da CSDG. Depois de sair da saleta de música do Museu do Amanhã, não encontrei mais o rapaz, porém, isso não impediu que, na semana seguinte, fizesse algumas pesquisas durante a detenção na Biblioteca.
Gleice ficava feliz com meu súbito interesse pela história do Rio e contou que aquelas letras significavam "Colégio de São Domingos Gusmão", um internato apenas para rapazes, bastante caro e exclusivo, com tecnologia de ponta e os melhor professores do país. Uma verdadeira fábrica de líderes mundiais e empresários milionários.
Em meus estudos, descobri que a tal escola se encontrava próxima daquela parte do Centro, perto até do Museu. Era um prédio antigo, datado de 1850, onde funcionou um orfanato dedicado à memória e vida do Santo.
- Dizem que eles forçam os rapazes a jejuar por dias, nos feriados religiosos. E há boatos que, a maioria deles, nunca esteve com uma garota. – Sussurrou a bibliotecária, sempre olhando para os lados, como se aquilo fosse um segredo de Estado.
- Como você sabe disso? – Perguntei, já enfiando o material coletado na mochila para estudar mais tarde.
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- Eu tive uma amiga que tinha uma prima que namorou um desses meninos quando a gente era adolescente. – A morena suspirou, os óculos escorregaram alguns milímetros pelo nariz. – É claro que não deu certo.
- E por que não?
- Olha, Luna... Eu nasci em Nilópolis e tenho muito orgulho da minha terra. A Beija-Flor sempre faz bonito, nossos carnavalescos são lendários, nosso bairro é cheio de amor, de felicidade... Mas, lá do outro lado, é tudo favela. – Gleice não me encarava enquanto falava, sua atenção estava na pilha de livros novos para registrar. Ainda assim, aquilo me feriu como uma faca. – Não dá pra misturar quem não quer entrar na mistura, entende?
Pela primeira vez, a voz fictícia de Dante Alighieri invadiu meu cérebro, como uma memória doce de algo que nunca se viveu.
- "Quem és tu que queres julgar, com vista que só alcança um palmo, coisas que estão a mil milhas"? – Mal pude completar a citação e um sorriso alvo se estendeu pelos lábios da moça.
- Você continuou lendo o que recomendei? – Ela nem escondia a felicidade.
- Estou terminando "A Divina Comédia"... – Apesar do meu tom desinteressado, sabia que tinha muito que agradecer. – Qual você acha que eu devo começar depois?
- "A Epopeia de Gilgamesh" pode ser um pouco cansativo, mas acho ideal para depois de um Dante.
- "Depois de um Dante"... – Divertidamente, imitei seu tom de voz. – Parece que estamos falando de drinks bons.
- E não estamos? – Apesar do timbre amigável, sua expressão era séria. A linha marcada na testa castanha dava um ar tenso ao rosto de Gleice. – Se gosta de beber álcool, devia experimentar alguma vez ficar embriagada de literatura. Até a ressaca faz valer a pena!