Capítulo 2

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A primeira coisa que pensei ao abrir os olhos foi "o céu dói". Meu corpo todo doía. Algo preso à minha mão incomodava e minha garganta estava tão seca, que tive a sensação de dor ao engolir. Não fui uma má pessoa, embora não tenha cultivado amizades, nem relações mais próximas com o resto dos meus familiares, tirando minha irmã. Eu fui uma pessoa boazinha. Nunca fiz mal a ninguém. Pelo menos que eu tenha ficado sabendo, então por que doía tanto? E se eu estivesse no inferno? Abri os olhos indo contra o incômodo da luz forte e o avistei: o anjo da morte que me buscou. E eu soube que não estava no inferno porque ele estava ali, pairando sobre mim, os olhos com uma luz acolhedora.

— Eu... — Minha garganta ardia, mas me forcei a continuar. — Eu morri na rua? Em frente a um presídio? — Não estava achando justo a maneira como havia morrido.

As sobrancelhas do anjo da morte se franziram e ele pareceu confuso.

— Você é um anjo? Desses que buscam a alma da pessoa quando ela morre? É um ceifeiro? Acho que é esse o nome.

Ele riu. Tentou disfarçar, dada minha cara feia para sua reação, então pigarreou e, lentamente trouxe a mão em direção ao meu rosto, tocando-me gentilmente por poucos segundos.

— Não acho que esteja morta, Ellen. Você está com sede? O médico já virá vê-la.

Ele me ajudou a sentar-me ajeitando-me nos enormes e confortáveis travesseiros e percebi que o incômodo que sentia na mão, era de uma agulha, com acesso a medicação. Pouco depois, o anjo aproximou-se de mim de novo, pediu licença para sentar-se na cama e levou o copo com água até meus lábios. Bebi como um camelo seco no deserto. Apesar da dor ao engolir o liquido, minha boca parecia seca.

— Você quer mais? — ele me perguntou limpando gentilmente uma gota que escorria por meus lábios, e demorei pouco mais que alguns segundos para processar sua pergunta e respondê-la, afirmando.

— Quem é você? —  perguntei finalmente ao me dar conta de que não estava morta.

Ele pareceu muito sem graça com minha pergunta. Como um menino que fez arte, colocou as mãos no bolso tentando parecer casual, e, apesar da falta de jeito, olhou-me nos olhos ao responder.

— O motorista.

— Motorista assassino, sei. E eu pensando que era um anjo.

— Não entendo porque pensaria isso — comentou com certa tristeza em seu tom de voz.

— Me lembro de um baque, muito barulho e tudo girando. Sei que caí na rua, e você apareceu, era tão bonito que pensei... — de repente meu rosto estava quente. Toquei-o com as mãos e me dei conta de que aqueles olhos indecentes estavam sobre mim, e um sorriso divertido se escondia muito mal em seus lábios. — Acho que bati a cabeça com muita força. Eu estou bem?

Já estava tão habituada a fazer aquela pergunta, que não me soou estranha. A cada médico, enfermeiro, a cada exame. Sempre achando que seria o último exame, a última consulta. Que o cronômetro do reloginho acima da minha cabeça seria drasticamente acelerado. Eu sempre fazia essa pergunta. Porque infelizmente não dependia de mim meu estado, e não cabia a mim saber como eu estava. Sempre nas mãos de estranhos.

— Considerando a pancada que levou — ele confirmou. — O médico já deve estar chegando.

Como que combinado, o médico entrou, fazendo-me um milhão de perguntas, tocando-me em diversos lugares. Reclamei apenas da dor que sentia e do incômodo na garganta, que ele garantiu que logo passaria.

— Vou mandar uma enfermeira agora mesmo para administrar um remédio para dor, senhorita Dummont, pela manhã já poderá ir para a casa.

Recostei-me de volta no travesseiro tentando descobrir que horas eram. Vi que minhas roupas e minha bolsa estavam sobre uma cadeira próxima. E o motorista assassino continuava ali, avaliando-me interessado, de pé. Ele era muito bonito! Alto, o cabelo loiro curtinho, arrepiado, aqueles olhos naquele tom indecente de azul. O corpo largo e braços que delineavam o suéter que usava com músculos bem definidos. E estava imundo. O cabelo seguia várias direções, como se tivesse passado a mão diversas vezes por eles. Os olhos azuis, cercados de vermelho, e olheiras apareciam em seu belo rosto confirmando que não dormia há horas. A expressão estava além de cansada, ele parecia esgotado, os ombros largos curvados para baixo, o franzido em sua testa, seu dia não havia sido dos melhores.

SACRIFÍCIO - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora