O derradeiro ofício

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É engraçado como certos detalhes fazem as coisas mudarem de figura, transformando uma experiência não tão boa em algo agradável, ou vice e versa. Dois dias antes, tinha conseguido um trabalho que lhe renderia uma boa grana para completar a renda do mês, que não era dos melhores. Quando finalmente chegou o dia da folga, onde iniciaria o trabalho freelance, o computador que usava em casa simplesmente pifou.

No dia anterior o jovem professor de 33 anos tinha recebido dois elogios, um sincero e o outro nem tanto. O primeiro foi de uma criança de 8 anos que durante uma das muitas aulas particulares que dava. Aquele seria com certeza um elogio sincero, pois alguns segundos antes o jovem tinha feito um a brincadeira diante da comparação que a criança fez enquanto quebravam o gelo da primeira visita do professor à casa do aluno. A criança disse que o professor lembrava alguém que ele conhecia, que imediatamente sorriu e perguntou: "Ele é gordo igual a mim?", e a criança respondeu: "Tio, você não é gordo."

O segundo elogio não foi tão sincero assim. Na volta pra casa, no intervalo de seus afazeres, foi abruptamente parado por uma cartomante que lhe agarrou pelo braço. Assustado, parou e deu atenção para a velha, mesmo que forçadamente, diante da intimação: "Vem aqui! Eu não vou te cobrar nada", disse a cartomante. Enquanto ele relutava tentando se desvincular dela, sendo o menos bruto e o mais simpático possível, veio o elogio: "Você é muito bonito..." Aquele seria um elogio que o deixaria saltitante, se não viesse acompanhando do restante: "...mas tem muita gente que sente inveja de você. Vem cá, deixa a tia ler a sua mão..." Conseguiu livrar a mão presa pela velha cartomante e saiu, pensando sobre o que acabara de acontecer, na aula e na rua.

No dia seguinte, já a caminho de casa, cansado da labuta diária, olhava pela janela a paisagem passando rapidamente diante de seus olhos longínquos. Enquanto passava por um túnel, viu seu reflexo no vidro do trem, se olhou e notou que todos também olhavam para ele. Baixou os olhos lentamente analisando o próprio reflexo no vidro, e em seguida, olhando pra os pés viu os tênis All Star Converse que gostava de usar; o vermelho no pé esquerdo e o cinza no pé direito. Queria ser invisível naquele momento, não sabia o que fazer diante de tamanha vergonha, quando então, uma pequena criança que deveria ter entre três e quatro anos, apontando o dedo na direção dos pés do rapaz disse: "Mamãe, mamãe! Eu quero assim!"

Um sentimento de conforto inundou o seu ser, a vergonha sumiu e ele se encheu de confiança. Daquele dia em diante sempre que saía usava calçados diferentes nos pés. Acabou virando palhaço.

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