O rádio-relógio

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Olhou pela última vez o próprio reflexo no espelho do banheiro antes de apagar a luz e voltar para o quarto. O relógio marcava 3:05am, era um rádio-relógio clichê daqueles que se vê nos filmes americanos; tinha ganhado do noivo uma semana antes do fatídico assalto em que os dois foram baleados; ele morreu na hora e ela ficou em coma por 2 semanas, não teve tempo de se despedir e nem foi ao funeral, e esse era um pesar que ela carregava consigo.

O olhar fundo e cansado já nem lhe chamava a atenção, acostumou-se a ele depois de chorar por vários dias seguidos, e então percebeu que a dor da perda não iria cessar, por isso resolveu sofrer em silêncio. Afastou-se de quase todos os parentes e amigos, no trabalho sempre que podia, evitava falar com as pessoas, e salvo por alguns pouquíssimos amigos verdadeiros, daqueles que não nos abandonam mesmo em situações extremas, ela quase não mantinha relações sociais.

A lua estava cheia naquela sexta feira, no caminho de volta para o quarto olhou para a cortina da sala que estava balançando ao vento. Em meio a penumbra e admirou-se da beleza da cena, o sofá branco, as flores murchas em cima da mesinha, parecia que as coisas estavam em preto e branco, assim como as cores de sua vida, os pés tocavam o chão gelado, a leve brisa que fazia os pêlos de seus braços se eriçarem, o silêncio, a paz de espírito, tudo parecia perfeito como um quadro pintado que eterniza o momento.

Aquele momento de imersão e paz duraria apenas mais uns poucos segundos, e então ela se deu conta de que não havia deixado as janelas abertas. De súbito a paz se transformou em desespero, principalmente quando ouviu a porta do quarto ranger, virou-se rapidamente para olhar mas não foi rápida o suficiente para distinguir a sombra humanoide que passou por entre a porta do quarto.

A brisa que outrora agradava agora incomodava, era como se a temperatura do ambiente tivesse caído ao negativo, se quisesse podia ver o vapor condensado que sai da boca em dias frios. Os pés descalços no chão gelado faziam-na ter a sensação de mais frio, somando-se a fina camisola branca que vestia.

Avistou claramente o telefone na mesa ao lado do sofá, apressada e ao mesmo tempo cautelosa foi em direção ao mesmo, tirou com cuidado do gancho e só depois de colocá-lo no ouvido e escutar o silêncio que se fazia por não ter linha foi que lembrou que a pelo menos seis meses não pagava a conta do telefone, e se arrependeu.

O barulho veio novamente aos seus ouvidos, mas dessa vez estava na direção da cozinha; ela se agachou por trás do sofá e silenciosamente foi esgueirando-se em direção a porta que dava acesso a cozinha, olhou e não viu ninguém, e de repente um frio em sua espinha quando sentiu o toque gélido em seu ombro, demorou para olhar, como se não acreditasse nos próprios sentidos.

O coração extremamente acelerado pulsava como se quisesse saltar de seu peito, virou o rosto lentamente e pôde ver a mão cadavérica em seu ombro direito, mesmo naquele estado a mão parecia ter algo familiar, percorreu com o olhar o antebraço, braço e enfim o rosto, e lá estava, a figura quase não lembrava o homem por quem ela foi apaixonada, mas se olhasse bem ainda era ele, os olhos fundos não eram os mesmos, nem o sorriso que ele estava dando, ou pelo menos ela achava que era um sorriso, o toque gelado não era o mesmo dos abraços quentes que ela se lembrava, a pele pálida que tinha agora era o oposto da pele bronzeada que ela tanto amou.

Assim, com um ar de espanto e tristeza, ela ouviu a doce voz de seu amado que estendeu sua mão em direção a ela e delicadamente falou: “Querida, eu vim aqui por você, vim porque você me chamou várias vezes em seu sono, vim porque você não quer viver sem mim”. Ela reconheceria aquela voz em qualquer lugar, e ao ouvi-la seus olhos encheram de lágrimas, tudo foi ficando embaçado, tudo escurecendo e então ela acordou. Olhou para o rádio-relógio que marcava 7:35am e mais uma vez pensou: “Droga, perdi a hora de novo".

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