A casa do alto da colina era a mais velha e assustadora do bairro; todos os garotos tinham medo de se aproximar dela, principalmente quando escurecia e somente se podiam ver os vultos caminhando lá dentro guiados pelas luzes de velas. A casa estava como que abandonada, mal pintada com cores velhas que pareciam ter mais de meio século de idade, as grandes janelas de vidro sujos ofuscavam a luz de dentro da casa, o deque ao redor da casa estava repleto de vasos de plantas murchas e secas, e tinha também uma velha cadeira de balanço que se movia com o vento. A vegetação seca e alta ao redor da casa, era mais um aspecto que fazia a antiga casa parecer assombrada.
Quando o velho senhor que morava lá saía para as compras, geralmente a noite, era impossível não se assustar com aquele enorme carro funerário preto, que parecia estar sendo guiado pelo próprio Caronte, isso se Caronte fosse um motorista e não um barqueiro. O Cadillac Miller-Meteor Ambulance Fleetwood impressionava quando passava, era tão bem polido que parecia até um espelho negro, e nós até evitavamos olhar para ele de perto. Uma vez um garoto da rua de cima teve uma convulsão olhando para o carro enquanto ele passava, e isso ajudou a disseminar a fantasia de que, ao ver o próprio reflexo no carro, o mesmo sulgaria a sua alma para dentro. Fora isso, nós adorávamos ver ele passando de longe, principalmente depois que assistimos Os caça-fantasmas no cinema, e imaginávamos ele branco com o logotipo nas portas. Anos depois a gente descobriu que o menino que convulsionou era epilético.
Com certeza nosso maior medo era de que algum conhecido de nossos pais morresse e nós tivéssemos que ir ao enterro, já que em todos eles se faziam presentes o velho Caronte e seus dois filhos, uma moça branca e pálida que mais parecia estar com problema de hemorragia, com seus cabelos longos e negros, olhar fundo e distante e seus vestidos pretos com as beiradas arrastando no chão, e seu irmão gêmeo, um rapaz alto e magro, tão branco quanto a irmã, e com olhos fundos idênticos aos dela, porém por algum motivo ele era loiro e estava sempre com um sorriso macabro no rosto. Os irmãos não freqüentavam a nossa escola, deviam ser uns 3 ou 4 anos mais velhos que eu, e minha mãe dizia que eles eram educados casa, coisa que eu nunca entendi, já que meus pais sempre ficavam bravos quando eu dizia que queria ficar em casa para ser educado.
Quando voltei para casa, depois dos cinco anos de faculdade, a primeira coisa que percebi ao entrar na rua da minha casa foi que a casa do alto da colina não estava mais lá. Perguntei durante o jantar com os meus pais sobre a casa e sobre os moradores, e soube que o velho senhor Caronte - Edgar era o nome verdadeiro dele - falecera a dois anos, sua esposa que não saía de casa foi internada num manicômio depois que seus dois filhos se suicidaram após entrar para uma dessas seitas religiosas. O mais estranho é que, mesmo a casa não estando mais lá, a gente ainda pode ver as mesmas imagens de alguns anos atrás, os vultos andando à luz de velas, ofuscadas por janelas sujas, porém isso acontece somente nas noites de lua nova.
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Desencontos - Histórias e ideias cotidianas
Short Story#31 - Shortstories - 22/10/2018 Desencontos são curtas histórias do cotidiano contadas como contos, crônicas ou até mesmo poemas. O objetivo aqui é escrever e usar esse espaço para publicar ideias que serão base - ou não - de outras histórias, mas l...