Duas histórias

26 7 2
                                    

Gioconda olhou o pequeno vidro de perfume francês caído no chão e sentiu uma ponta de arrependimento enquanto a deliciosa fragrância invadia o quarto, provindo daquele pequeno frasco cor de âmbar, o arrependimento não era por ter cortado todas as roupas do marido infiel assim que soube da traição, mas porque aquele era o perfume preferido dela. Ela deveria ter sido mais cuidadosa na hora de atacar os pertences do traidor. Por pior que fosse a situação, o que ela não conseguia entender era como o marido pôde trai-la com a mulher mais mal falada da cidade. A tal fulana era famosa por arruinar casamentos, os homens babavam por ela, vendiam propriedades e com o dinheiro pagavam verdadeiras fortunas para ter algumas horas de prazer semanal, com a ilusão de que ela algum dia seria somente deles. Mas e ele? como ele também havia caído nas armadilhas daquela mulher?

A belíssima moça de olhos claros, observou que o vaso de terracota, ornado com lindos florais, parecia solitário sobre a grande mesa de madeira de lei que preenchia o centro da sala de jantar. Ela se aproximou e enfiou dentro dele um enorme ramalhete de flores, arrumando-as para que ficassem perfeitas, quando estavam, girou o vaso 15 graus para a direital. "Perfeito!" Exclamou com vivacidade, a jovem que acabara de completar 16 anos.

Aquela teria sido uma lembrança de quando a jovem Gioconda ainda era inocente, e tudo que ela queria era uma casa azul com cercadinho branco. Isso foi a muito tempo atrás, agora, 40 anos após aquele episódio, sentada em sua cadeira de balanço, estrategicamente posicionada aos 45 graus na varanda, onde podia ver a extensão da rua e a porta de casa, que era a última da rua sem saída, controlava o acesso de qualquer que fosse o intruso, pelo menos era isso que imaginavam quando a viam ali sentada, mirando cada pessoa que passava. Para ela, o som da rua era agradável, suas luzes intermitentes eram uma de suas poucas alegrias, observava cada carro e cada pessoa que passava em sua rua, não tentando descrever suas histórias ou seus segredos como todos pensavam, ela tentava esconder seu próprio passado, não dos outros, mas de sí mesma.

* * *

Guilhermo estava parado a pelo menos 10 minutos, inundado em suas memórias mais antigas. O homem de 68 anos nem acreditou quando viu a enorme árvore no parque em frente a sua antiga casa. Ao vê-la foi como se uma tela de cinema surgisse em sua frente e ele pudesse visualizar o exato momento em que ele e sua amada, a pouco mais de 40 anos, plantaram aquela pequena muda de aproximadamente 50 centímetros no chão do parque; aquele seria um projeto para quando os filhos nascessem, planejavam colocar um balanço de pneu em um de seus galhos e em balar seus filhos e quem sabe os netos.

A grandiosa Árvore Imperatriz produzia uma sombra agradável diante do sol que fazia naquele dia, sua folhagem verde vibrante era extremamente bonita aos olhos de seu cuidador, que admirava o quão belo tinha se tornado aquele minúsculo ser. Relembrou os detalhes de seu romance, os passeios de mãos dadas nos finais de semana, os filmes que assistiam juntos no cinema da cidade, os planos de comprar uma casa e pinta-la de azul e construir um cercadinho branco.

Alguns meses depois de ter plantado a pequena árvore, o jovem apaixonado foi obrigado a mudar-se por conta de um trágico incidente que praticamente destruiu sua vida, um deslize pelo qual se arrependia profundamente o fez mudar dalí e reconstruir sua vida em outra cidade bem distante, mas agora, após a morte da esposa e com os filhos crescidos, voltara para tentar reaver o passado e quem sabe encrever um futuro.

* * *

Seu rosto pareceu iluminar ao vê-lo dobrar a esquina, mesmo andar, mesmo tique jogando a perna direita um pouco mais que a esquerda, parecia que os anos não haviam passado, mas como não? Há pelo menos 20 anos ela aguardava aquele reencontro, desde que seu marido foi morto na guerra ela criara a esperança de que um dia o antigo amor retornaria. Como pode? Mesmo depois de tanto tempo e depois tudo que aconteceu no passado? O coração dela palpitava como de uma adolescente, o rosto rubro e quente com a vergonha, mil coisas passaram em sua mente quando ele se aproximou com aquele sorriso galanteador de sempre, acompanhado da voz grave e aveludada que tinha, disse enquanto subia a escada: "Gioconda, tudo bem? A quanto tempo?"

Um turbilhão de emoções a invadiu, não sabia como ou o que responder, pensou nas várias vezes que sonhou com aquele momento, no que diria quando o visse, algumas vezes imaginava-se o colocando para fora, outras vezes ela se via envolvida em seus braços. Em 1 segundo reviveu diversos momentos de alegria e sofrimento, lembrou das juras de amor eterno que fizeram, dos planos que nunca se concretizaram, a promessa de que ele nunca a machucaria, que envelheceria ao seu lado... Sentiu ao mesmo tempo ódio e amor, raiva e compaixão, rancor e cumplicidade, 40 anos de separação resumidos em poucos segundos, o suficiente para relembra-la de quanto ainda o amava e que nada mais importava. Resolveu deixar o passado para trás, levantou-se de sua cadeira com um largo sorriso no rosto, ofereceu-lhe um abraço e falou: "Guilhermo, tudo bem? Não quer entrar e tomar uma xícara de chá?"

Desencontos - Histórias e ideias cotidianasOnde histórias criam vida. Descubra agora