A moça de branco

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Sempre pensei que duas coisas viam almas: crianças e gatos. Uma dia sai do banheiro e vi meu gato olhando fixo para a parede; era de madrugada e fazia demasiado silêncio, e mesmo que eu tentasse não conseguia ouvir nem sequer um grilo cantando no lado de fora.

Naquela noite em particular, as luzes pareciam cintilar de uma maneira peculiar, estavam mais fracas que o normal, mas como eu tinha acabado de acordar, só percebi isso depois. O ar gélido da madrugada estava significativamente denso, mesmo para um inverno tão rigoroso quanto o que estávamos enfrentando naquele ano. Na TV disseram que era o mais frio dos últimos 50 anos, antiga casa em que morávamos não possuía aquecedores, mas se pensasse bem, a casas de nenhum vizinho ou conhecido tinha, ninguém precisava disso por esses lados.

Lembro-me de abrir a porta do banheiro e "dar de cara" com o gato olhando para a parede. Fiquei ali por um tempo observando a situação, pensando o que ele devia estar fazendo, e ele de repente saiu perseguindo aquilo, seja lá o que ele estivesse vendo.

Desliguei a luz do banheiro e foi só aí que me dei conta do quanto estava escuro naquela noite, era lua nova e por isso não tinha o brilho do luar, e para variar, justo naquela noite eu havia saído do quarto e não tinha acendido nenhuma luz no caminho até o banheiro.

Depois do silêncio e no escuro, de repente o sibilar do gato me deixou em estado de alerta, o gato correu em direção a sua casa, que ficava na outra parede, e de lá ele dava uns rosnados como se estivesse tentando espantar alguma coisa.

Quando o gato parou de rosnar foi que a coisa ficou realmente tensa, a escuridão pareceu ter ficado mais escura, o silêncio mais silencioso, meu corpo ficou pesado quase que imóvel, não sei se pelo medo ou se aquela coisa tinha exercido alguma influência sobre mim. Tentei caminhar e minhas pernas estavam formigando, como se estivessem dormentes, mesmo assim caminhei com muita dificuldade em direção ao quarto.

Estava quase lá quando ela me tocou, ou eu toquei nela, não sei direito como foi, senti todos os pêlos do meu corpo se arrepiando, os músculos enrijecendo, as pupilas dilatadas tentando freneticamente enxergar o que havia no escuro, e então lá estava ela, parada na minha frente e com o braço direito estendido em minha direção, uma moça que aparentava ter uns 10 anos, loira, sua pele era pálida, quase tão branca quanto a manta que vestia, os olhos negros e profundos eram vazios e ao mesmo tempo cheios de desprezo, caminhou lentamente em minha direção, pareceu que seus movimentos eram forçados, como se sentisse dor, eu fiquei paralisado, sem forças para correr ou gritar, o silêncio era tão perturbador ao ponto de parecer que meus tímpanos iam explodir, mesmo assim consegui ouvir ela falar "Não me deixe, papai!" pouco antes de minha esposa abrir a porta do quarto e a luz que vinha lá de dentro dissipar todo aquele clima.

Até hoje não sei se ela também viu a coisa, mas na manhã seguinte, durante o café ela disse que queria se mudar, e assim fizemos, mudamos para outra casa, outro bairro, outra cidade... porém, sempre que o gato está olhando para a parede eu a vejo em minhas memórias, porém nunca mais saí do quarto sem acender todas as luzes da casa.


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