2 - 2

121 7 0
                                    


Não sei há quanto tempo estava dormindo quando ouvi as batidas na porta.

No início não dei bola porque a pessoa batendo dizia "Elly, Elly, Elly, me deixa entrar", e eu não conhecia nenhuma Elly. Mas então outro tipo de batida, um toc-toc seco, se seguiu à primeira - e uma voz bem mais decidida falou, "Senhorita Greenwood, sua amiga quer falar com você", e eu soube na hora que ela se referia a Doreen.

Levantei num pulo e parei por um instante no meio do quarto escuro, oscilando como uma sonâmbula. Estava irritada por Doreen ter me acordado. Minha única chance de fugir daquela
noite infeliz era dormir bem, e ela havia me acordado e estragado tudo.

Pensei que se fingisse estar dormindo as batidas iriam parar e me deixar em paz, mas esperei e não adiantou.

"Elly, Elly, Elly", murmurava a primeira voz enquanto a outra sibilava, "Senhorita
Greenwood, senhorita Greenwood, senhorita Greenwood", como se eu tivesse dupla personalidade ou algo do tipo.

Abri a porta e franzi os olhos diante do corredor iluminado. Tive a impressão de que não
era noite nem dia, mas um hiato sombrio que tinha repentinamente se enfiado entre os dois e agora nunca mais iria chegar ao fim.

Doreen estava apoiada no batente da porta. Quando saí, ela se jogou nos meus braços.
Não dava para ver sua cara porque a cabeça estava tombada e o cabelo endurecido, com
raízes escuras, caía sobre seu rosto feito uma saia havaiana.

Reconheci a mulherzinha atarracada e bigoduda de uniforme preto: era a faxineira da noite, que passava vestidos e casacos de festa num cubículo no nosso andar. Era difícil
entender como ela conhecia Doreen, ou por que quis ajudá-la a me acordar em vez de levá-la
em silêncio para o seu quarto.

Ao ver Doreen em meus braços, num silêncio interrompido por soluços ocasionais, a mulher afastou-se pelo corredor rumo a seu cubículo, onde havia uma máquina de costura e uma tábua de passar. Minha vontade era correr atrás dela e dizer que eu não tinha nada a ver
com Doreen: a mulher parecia séria, trabalhadora e cheia de senso moral, como uma imigrante europeia à moda antiga, e me lembrava minha avó austríaca.

- Deixa eu deitar, deixa eu deitar - sussurrava Doreen. - Deixa eu deitar, deixa eu
deitar.

Minha impressão era que se eu a trouxesse para o meu quarto e a levasse para a minha cama, nunca mais me veria livre dela.

Ela apoiava o peso do corpo no meu braço e estava quente e macia como uma pilha de
travesseiros. Seus pés, enfiados em sapatos de salto agulha, se arrastavam de maneira
ridícula. Ela era pesada demais para que eu a arrastasse pelo corredor.

Decidi que a única coisa a fazer era largá-la no carpete, trancar minha porta e voltar a
dormir. Quando Doreen acordasse, não se lembraria do que aconteceu e pensaria que
simplesmente desmaiou na frente da minha porta - e então se levantaria por conta própria e voltaria ao seu quarto como uma pessoa sensata.

Comecei a deitar Doreen delicadamente no carpete verde do corredor, mas ela soltou um
gemido baixinho e se projetou para a frente. Um jato de vômito marrom voou da sua boca e se
espalhou numa grande poça aos meus pés.

Doreen ficou subitamente mais pesada. Sua cabeça tombou para dentro da poça, os tufos
de seu cabelo dourado se encharcando como as raízes de uma árvore num lodaçal, e percebi que ela tinha caído no sono. Recuei. Eu mesma me sentia meio sonada.

Tomei uma decisão sobre Doreen naquela noite. Resolvi que a vigiaria e escutaria o que
dissesse, mas lá no fundo eu não teria mais nada a ver com ela. No fundo, eu seria leal a Betsy
e suas amigas ingênuas. Era com ela que eu mais me parecia no fim das contas.

Entrei no meu quarto silenciosamente e fechei a porta. Pensei melhor e não a tranquei. Eu não era capaz de fazer aquilo.

Quando acordei em meio ao calor triste e abafado da manhã seguinte, me vesti, lavei o rosto com água fria, passei batom e abri a porta vagarosamente. Acho que ainda esperava ver
o corpo de Doreen jogado naquela piscina de vômito como uma testemunha horrível e
concreta da minha própria natureza suja.

Não havia ninguém no corredor. O carpete se estendia de uma ponta à outra, limpo e
esverdeado, exceto por uma mancha irregular e quase imperceptível diante da minha porta, como se alguém tivesse acidentalmente derrubado um copo de água ali mas prontamente secado o estrago.

A Redoma de Vidro ( em edição)Onde histórias criam vida. Descubra agora