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Quando saímos dos escritórios da Ladies' Day, tão iluminados que parecia haver um sol lá
dentro, as ruas estavam cinzentas e cobertas por névoa e chuva. Não aquela chuva boa, que parece que dá um banho na gente, mas o tipo que imagino que exista no Brasil. Ela caía do céu em gotas do tamanho de pires, atingindo as calçadas quentes com um silvo, soltando nuvens de vapor que se contorciam ao deixar o concreto escuro e reluzente.

Minha esperança secreta de passar a tarde sozinha no Central Park morreu nos vidros das
portas giratórias da Ladies' Day. Me vi sob a chuva morna e então dentro de um táxi sombrio
e trepidante, junto com Betsy, Hilda e Emily Ann Offenbach, uma mocinha empertigada com
um coque ruivo que vivia com o marido e três filhos em Teaneck, Nova Jersey.

O filme era muito ruim. Os protagonistas eram uma loira bonita que lembrava a June
Allyson mas não era ela e uma morena sexy que parecia a Elizabeth Taylor, mas também era outra pessoa, além de dois trogloditas gigantescos chamados Rick e Gil.

Era uma história romântica em tecnicolor, envolvendo futebol americano. Eu odeio tecnicolor. Nos filmes em tecnicolor todos parecem se sentir obrigados a usar roupas berrantes e ficar parados como varais de pé diante de árvores muito verdes, campos de trigo muito amarelos ou oceanos muito azuis se estendendo por quilômetros e quilômetros em
todas as direções.

A maioria da ação nesse filme se passava em arquibancadas de estádios de futebol, com
as duas moças acenando e torcendo em terninhos com crisântemos laranjas do tamanho de repolhos nas lapelas, ou em salões de baile, onde deslizavam com seus pretendentes usando
vestidos que pareciam saídos de E o vento levou, para então se enfiarem juntas no lavabo e
dizerem coisas maldosas e intensas uma para a outra.

Entendi que a moça legal terminaria com o jogador legal e a moça sexy acabaria sozinha,
porque o sujeito chamado Gil queria uma amante, não uma esposa, e estava se mandando para a Europa com um bilhete só de ida.

A essa altura comecei a me sentir esquisita. Olhei ao meu redor, para aquelas fileiras repletas de cabecinhas extasiadas, todas com o mesmo brilho prateado na frente e a mesma sombra escura atrás, e elas pareciam nada mais nada menos que um bando de idiotas.

Senti uma vontade horrível de vomitar. Eu não sabia se o enjoo era culpa daquele filme
horroroso ou da quantidade de caviar que eu tinha comido.

- Vou voltar pro hotel - sussurrei para Betsy na penumbra.

Betsy estava olhando para a tela com concentração absoluta. - Você não está se sentindo
bem? - ela perguntou quase sem mover os lábios.

- Não - eu disse. - Estou péssima.

- Eu também, vou com você.
Deslizamos para fora das nossas poltronas e saímos dizendo "licença, licença, licença"
até o final da nossa fileira. As pessoas resmungavam e suspiravam e tiravam suas botas e seus guarda-chuvas do caminho para nos deixar passar, e eu pisei no maior número de pés que consegui porque aquilo afastava meus pensamentos da enorme vontade de vomitar que pairava ao meu redor.

Quando chegamos à rua, uma garoa morna ainda caía.
Betsy parecia uma assombração. A cor de suas bochechas tinha desaparecido e seu rosto pálido flutuava à minha frente, esverdeado e molhado de suor.

Entramos num desses táxis
quadriculados que estão sempre esperando na calçada enquanto você decide se deve ou não
pegar um táxi, e quando chegamos ao hotel eu já tinha vomitado uma vez e Betsy, duas.

O motorista do táxi fazia as curvas com tanta violência que éramos jogadas de um lado
para o outro do banco traseiro. Quando uma de nós ficava enjoada, se dobrava
discretamente para a frente, como se estivesse pegando algo que caiu no chão, enquanto a outra cantarolava e
fingia que estava olhando pela janela.

Mesmo assim o motorista do táxi percebeu o que estávamos fazendo.

- Ei - ele protestou, após passar um sinal que acabara de ficar vermelho -, vocês não
podem fazer isso no meu carro, vão fazer lá fora!
Mas a gente não disse nada, e acho que ele pensou que já estávamos quase no hotel,
porque só nos deixou sair do carro quando parou diante da portaria.

Não quisemos nem esperar para saber quanto a corrida sairia. Enfiamos um monte de
moedas na mão do taxista, largamos uns lenços de papel para cobrir o estrago no chão e
corremos lobby adentro até o elevador. Ainda bem que não havia muito movimento àquela
hora. Betsy passou mal outra vez no elevador, e segurei sua cabeça. Então quem passou mal
fui eu, e ela segurou a minha.
Normalmente basta vomitar para se sentir bem. A gente trocou um abraço, se despediu e
saiu em direções opostas do corredor, para descansar em nossos próprios quartos.

Nada
melhor do que vomitar com outra pessoa para ganhar intimidade.

No instante em que fechei a porta, tirei a roupa e deitei na cama, porém me senti pior do
que nunca. Eu precisava ir ao banheiro. Vesti com dificuldade meu roupão branco com
centáureas azuis e me arrastei até lá.

Betsy já estava ali. Eu podia ouvir os gemidos dela atrás da porta, então corri até o
banheiro da outra ala. Era tão longe que pensei que fosse morrer.

Sentei no vaso e apoiei minha cabeça na borda da pia. Achei que ia perder minhas tripas
junto com o meu jantar. O enjoo vinha em grandes ondas. Depois de cada onda ele desaparecia
e me deixava tremendo toda, mole feito uma folha molhada, e então eu sentia aquilo crescendo dentro de mim outra vez e os azulejos que me rodeavam, brancos e brilhantes como numa câmara de tortura, fechavam-se sobre mim e me esmagavam.

Não sei quanto tempo aquilo durou. Deixei a água correndo na pia, de modo que se
alguém aparecesse acharia que eu estava lavando as minhas roupas, e quando me senti
minimamente segura, me estiquei no chão e fiquei ali, imóvel.

Nem parecia que estávamos no verão. Eu podia sentir o inverno chacoalhando meus
ossos e fazendo meus dentes baterem, e a grande toalha branca que eu havia trazido do quarto descansava sob a minha cabeça como um monte de neve.

*

A Redoma de Vidro ( em edição)Onde histórias criam vida. Descubra agora