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A próxima coisa que vi foi o sapato de alguém.

Era um sapato pesado de couro preto, bem velho, rachado e sem polimento, com minúsculos furinhos para entrada de ar na ponta. Ele estava voltado na minha direção. Parecia
repousar sobre uma superfície verde e dura que estava machucando minha bochecha direita.

Fiquei imóvel, esperando que uma pista qualquer me desse alguma ideia do que fazer. À
esquerda do sapato vi um monte de flores azuis sobre uma base branca, e aquilo me deu
vontade de chorar. Era a manga do meu próprio roupão de banho, e minha mão esquerda saía dali, pálida feito um bacalhau.

- Está tudo bem com ela agora.
A voz veio de uma região serena e racional muito acima da minha cabeça. Por um momento pensei que não havia nada de errado naquilo, e então comecei a achar estranho. Era uma voz de homem, e homens não eram permitidos no hotel nem de dia nem de noite.

- São quantas no total? - continuou a voz.

Escutei com interesse. O chão parecia maravilhosamente sólido. Era reconfortante saber
que eu tinha caído e agora não tinha mais para onde descer.

- Onze, acho - respondeu uma voz de mulher. Imaginei que ela devia pertencer ao
sapato preto. - Acho que são onze delas, mas está faltando uma, então só são dez.

- Bom, leva essa aqui pra cama e eu vou dar uma olhada nas outras.

Ouvi uma série de ruídos graves na minha orelha direita, que foram lentamente perdendo
força. Uma porta se abriu ao longe, ouvi vozes e gemidos, e a porta voltou a se fechar.

Duas mãos deslizaram sob minhas axilas e a voz feminina disse: "Vem, queridinha,
vamos lá"; senti que eu era erguida, e lentamente as portas começaram a passar por mim, uma depois da outra, até que chegamos a uma porta aberta e entramos.

Os lençóis da minha cama haviam sido trocados, e a mulher me ajudou a deitar e me
cobriu até o queixo. Ela sentou-se por um minuto na cadeira ao lado da cama, abanando-se
com uma mão gorda e rosada.

Usava óculos de aro dourado e um quepe branco de enfermeira.

- Quem é você? - perguntei com a voz fraca.

- Sou a enfermeira do hotel.

- O que aconteceu comigo?

- Intoxicação - ela disse laconicamente. - Todas vocês. Nunca vi nada igual. Vômito
pra tudo que é lado. O que é que as senhoritas andaram comendo?

- Todo mundo passou mal? - perguntei, cheia de esperança.

- Todas vocês - ela disse alegremente. - Enjoadas feito cachorrinhos e chamando
pela mamãe.

O quarto girava ao meu redor delicadamente, como se as cadeiras, as mesas e as paredes
tivessem renunciado a seu peso em solidariedade à minha súbita fragilidade.

- O doutor te deu uma injeção - disse a enfermeira já na porta. - Você vai dormir
agora.

E a porta tomou o lugar dela como uma folha branca de papel, e então uma folha de papel
maior ainda tomou o lugar da porta, e flutuei sorrindo até ela e caí no sono.

*

A Redoma de Vidro ( em edição)Onde histórias criam vida. Descubra agora