Capítulo Um

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  • Dedicado a Bruno Oliveira
                                    

Emma Banks nem desconfiava do que havia se passado ao despedir-se de sua amiga Vick para voltar para casa. Ela era o tipo de adolescente comum em Winstow, sua cidade, naquela época: cabelos louros caindo em cachos indomados até os ombros, olhos azuis que podiam muito facilmente serem comparados ao céu acima de sua cabeça naquela manhã colorida de primavera, nariz arrebitado que combinava maravilhosamente com sua boca bem delineada pelo batom rosa que levava, bochechas avermelhadas pelo calor da caminhada, mãos pequenas e delicadas, pés ágeis e cintura fina, os traços suaves do maxilar se sobressaindo em seu rosto de boneca. No vestido floral que sua mãe lhe dera no seu aniversário, pouco antes de falecer, seu pouco busto e seus braços roliços, mas magricelos, eram acentuados de uma forma que chamava a atenção dos homens que passavam por ela. Carregava o livro entre as mãos cruzadas e ia absorta em pensamentos com o fone de ouvido tocando sua música predileta.

Tudo parecia normal para ela: os passarinhos continuavam voando acima das árvores da praça central, a fonte ainda jorrava sua água intensamente clara, o sol ainda beijava sua pele branca, os semáforos continuavam dando as leis no trânsito, ela ainda precisou olhar duas vezes para cada lado da rua antes de atravessar, e o porteiro de seu prédio ainda sorriu em forma de cumprimento quando ela passou.

Mas a normalidade ficara longe de sua casa naquele dia. Ao abrir a porta da frente, gritou chamando por seu pai, e como não ouviu resposta, virou-se e... ficou estática. Ao olhar para as almofadas rasgadas do sofá destroçado, a estante dos livros tão sagrados caída junto a televisão aos cacos no centro da sala de estar, papéis por todo lado, retirados de todas as gavetas, de todos os armários, a mesinha de madeira marrom quebrada em dois pedaços, as fotos no chão, o espelho rachado no qual tantas vezes ela se mirara, a luz ainda acesa e a cadeira ainda com as cordas amarradas em seu torno ela não conseguiu se mover. Sua cabeça girava e seu corpo tremia, sem que ela pudesse controlá-lo.

A paralisia só cessou quando ela se deu conta do que realmente podia ter acontecido com seu pai. Então ela correu até a cozinha, e percebeu que a bagunça estava por toda parte. No quarto, ela viu seus cobertores no chão, os criados-mudos virados e os armários escancarados. O quarto de seu pai parecia qualquer um de uma cena de horror: as roupas reviradas no chão, o armário completamente destruído, e os livros, ah os livros, rasgados, aniquilados, por mãos que não sabiam o quanto valiam. Ela voltou para a sala e tentou conter o choro que descia em torrente sobre seu rosto. O susto aumentou ao perceber as manchas escuras de sangue seco sobre o tapete, e ela temeu por seu pai, e odiou-se por não estar ali naquela hora.

Emma correu para a rua, bateu nas portas de todas as casas da vizinhança com a esperança ainda acesa de encontrar o homem que a criara, mas antes mesmo de dobrar a esquina, já tinha a terrível certeza de que não iria achá-lo. Ela então correu ainda mais, subiu a rua acima da sua e foi para o único lugar do mundo onde se sentia segura, além de sua casa: o lago. Ficou lá por muito tempo, mas a paisagem agora eram apenas borrões incompreensíveis, por culpa das lágrimas que lhe afloravam aos olhos. O brilho da lua refletindo na superfície da água já não tinha a mesma beleza, e ela se viu perdida, sozinha num mundo que ainda não estava pronta para encarar. Sem ter mais o que fazer, voltou a passos lentos e ainda incertos para casa, e depois de horas de choro compulsivo e incessante, finalmente conseguiu dormir, esgotada pelo cansaço.

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