Capítulo Nove

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“Quando abriu os olhos, Emma estava em um lugar úmido e fétido, que não conseguia reconhecer. Ela sabia que não devia estar ali, uma sensação dentro dela a alertou para o perigo iminente que viria. Seus pelos do braço se arrepiaram, e as mãos insistiam em tremer sem parar, sem que ao menos ela conseguisse controlá-las. Os olhos lacrimejavam devido a uma substância no ar, que os fazia coçar e arder. Os pés de Emma se recusavam a dar qualquer passo, enquanto sua cabeça girava em busca de algum ponto de reconhecimento, perscrutando cada canto do lugar pútrido em que se encontrava. O cheiro que pairava no ar frio da manhã sem sol não era qualquer um que a menina pudesse ter sentido até agora, do contrário seria impossível não lembrar dele. Era algo quase palpável, que não podia ser ignorado. A cada respiração Emma sentia que o cheiro adentrava suas narinas e ia direto para seu paladar, onde permanecia, criando uma sensação de enjoo em seu estômago. As árvores altas e antigas não eram tão convidativas para Emma como seriam em qualquer momento, em outro lugar. Elas agora pareciam quase ameaçadoras, com seus galhos se esgueirando por entre a névoa espessa que cobria o lugar, dando a impressão de mãos tentando agarrar o corpo da garota. Ela queria correr e sair dali, mas estava praticamente plantada naquele lugar, de onde suas pernas se recusavam a sair, por medo de ir parar em um ambiente pior. No fundo, Emma sabia que, mesmo que conseguisse andar, não saberia para onde ir, e isso poderia ser um erro terrível. O silêncio era absoluto, com exceção do vento que soprava, uivando por entre as folhas secas que Emma não entendia como ainda não haviam caído. Subitamente sucumbida pelo cansaço, a menina sentiu vontade de se recostar em uma daquelas árvores, por mais assustadoras que fossem, pelo simples prazer de se ver descansando, coisa que, ela sentia, não fazia há um bom tempo. Foi então que ouviu um murmúrio, e logo em seguida um guincho, parecido com um animal urrando. Só nesse momento notou que estava bem no meio de uma estrada estreita e que não parecia dar em lugar algum. Quando ouviu o som de cascos de cavalo batendo contra a terra poeirenta, instintivamente correu até o tronco grosso que estava ao seu lado, e escondeu seu minúsculo corpo atrás dele. Então ela os viu: monstros que Emma jamais havia sonhado que existiam, com rostos deformados, cores estranhas, e dentes podres. Eles passavam em comitiva bem perto dela, mas não a viram, para sua sorte. Ela podia sentir o cheiro de morte de onde estava, e por isso soube que eles poderiam ser qualquer coisa, mas jamais algo bom. Suas mãos enormes carregavam sacos do que parecia ser algum tipo de ração humana, e o monstro que guiava a carroça sentava de uma maneira completamente escrota, com os braços muito à frente de seu corpo, como se as rédeas não fossem compridas o suficiente para ele as alcançar. Os últimos da comitiva tinham cordas em suas mãos, que estavam presas a uma carga que, nesse exato momento, desabou no chão. Eles rapidamente pararam e se voltaram para trás. Deram alguns murros, pontapés e gritos, um som gutural que parecia muito primitivo para Emma. Então, ela percebeu que a ‘carga’ era uma pessoa. Levantando-se com dificuldade, mantinha o rosto abaixado, e tinha várias cicatrizes por todo seu peito desnudo. A poeira tomava sua face, e se misturava ao sangue que saía de feridas abertas. Os monstros pareciam não se importar nem um pouco com aqueles ferimentos, e Emma compadeceu-se em seu íntimo por aquele ser que ali se encontrava. Quando a comitiva voltou a andar, apressadamente o homem (Emma agora podia vê-lo melhor) voltou a dar seus passos falhos, tentando acompanhar o ritmo alucinante dos cavalos a sua frente. Não era fácil enxergar algo muito nitidamente por entre a névoa que se formou, mas quando a carroça passou na sua frente, Emma percebeu horrorizada que reconhecia aquele rosto. O rosto que tantas vezes ela havia chamado quando mais precisava, que tantas vezes havia contado histórias para que ela dormisse. Aquele homem, sujo e completamente debilitado, tratado como um animal por aqueles demônios, aquele homem era seu pai”.

Emma acordou com lágrimas escorrendo sobre sua face, sem conseguir proferir uma única palavra. Aquele sonho não podia ser real. Seu pai não tinha como estar com aqueles... monstros. Eles nem sequer existiam. De repente, a garota deu-se conta de que, por mais terrível que aquilo parecesse, seu coração lhe dizia que ela precisava encontrar seu pai, o mais rapidamente possível. Emma enxugou as lágrimas, e deitou-se mais uma vez, tentando em vão voltar a dormir, com aquela imagem impregnada em sua mente, como algo vívido, que ela tivesse realmente vivenciado.

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