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A essa altura, Kleist já tinha passado praticamente um mês vivendo

com os cleptos na serra de Quantock. Foi preciso algum tempo

para convencê-lo de que estaria a salvo ali. Embora nunca tivesse

ouvido falar dos cleptos ou de Quantock, Kleist já tinha encontrado

os irritados e desconfiados muçulmanos, os integrantes da tribo que habitava

os morros mais baixos da área. Ele vira os muçulmanos uma vez em

Memphis, e lhe disseram para ficar longe deles, especialmente das poucas

mulheres que traziam para consertar os tapetes dos muito ricos e desenhar

novos modelos. "Chegue perto de uma das mulheres dos muçulmanos, e eles

irão matá-lo, custe o que custar. E, selvagens que são, vão matar a elas

também, só para garantir."

Para deixá-lo mais preocupado, Daisy confirmou que isso era verdade e eis

uma descrição mais bondosa do que deveria ser.

— Os muçulmanos são fanáticos, loucos, perversos e maus. Eles odeiam is

mulheres e as tratam como cachorros, mas a religião deles os amaldiçoa

porque, apesar de todo o medo de que elas sejam mentirosas e vadias, o Deus

dos muçulmanos ordenou que mulheres e esposas guardem toda a honra dos

homens numa tigela dentro dos fígados, e, uma vez que a honra seja violada, a

única forma que o muçulmano tem de recuperá-la é matar a mulher e começar

de novo. Dá para acreditar nisso? Mesmo que a mulher tenha sido estuprada,

enforcam a pobre coitada. É revoltante.

— Os cleptos não são assim? ― perguntou um preocupado Kleist.

— Por Deus, não.

— Por quê?

— Porque, para começar, nós não somos malucos e porque viemos à serra

de Quantock e expulsamos os muçulmanos mil anos atrás.

— Então vocês são como os Materazzi, sem serem muito religiosos?

— Ah, não, nós somos muito religiosos.

Isso foi um golpe.

— Como? ― perguntou Kleist, decepcionado.

A descrição da fé de Daisy, apesar das declarações enfáticas quanto à sua

importância, não chegou a formar um quadro que Kleist pudesse definir. A

religião parecia limitar muito pouco os cleptos, até onde ele pôde entender.

Era veemente na diferença entre comer animais puros e impuros que, aos

olhos de Kleist, ninguém iria querer comer de qualquer forma. Era

estritamente proibido comer morcegos, por exemplo, ou qualquer coisa que

rastejasse ou andasse de lado. Comer aranhas significava que a pessoa ficava

impura por uma quinzena, e, caso Kleist cedesse à tentação de voltar a exercer

suas antigas habilidades de açougueiro, o que não era o caso, as consequências

seriam seis meses de exílio. A noção de Deus parecia bem distante. Os cleptos

As Últimas Quatro Coisas - Paul Hoffman (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora