Ajustes

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— Número um ou número dois? — disse aquela voz embalada pelos risos por trás da porta do meu banheiro neutro, completamente decorado com a escala de cores do branco ao cinza e do cinza ao preto.
— Estou procurando veneno para camundongos e bicarbonato de sódio para colocar na sua cerveja — tentei ser o mais séria possível, mas não consegui manter a postura por muito tempo até ouvir a risada que nasceu através da porta.
— Devo me assustar por você ter essas coisas no banheiro ou por você planejar me matar? Aliás, quem guarda bicarbonato de sódio no banheiro? E por que tem veneno para camundongos na sua casa?
Mas que maldito chato. Abri a porta do banheiro e encarei o Matt, que ao ver meus olhos ainda um pouco inchados, mudou o semblante e tomou uma postura cética, semelhante à que ele usa para fingir que está entendendo a matéria durante a aula.

— O que aconteceu? Só agora caiu a ficha que está ficando a poucos passos do Asilo Assombrado de Guihnx? — disse entendendo a mão para me tirar do banheiro. Algo dentro de mim avalia que muito provavelmente, ele saiba os motivos para isso tudo. Eu sou uma idiota. Me recompus e saí do banheiro.
— Preciso dar entrada nos meus papéis da aposentadoria. Uma idosa não pode ser exilada dos seus direitos como cidadã — tentei parecer o mais convincente possível com minha mudança de humor.
— Vem provar seu bolo — parece que funcionou, afinal.
Saí do banheiro e fui em direção à cozinha. Mamãe e Lisa já não estavam mais lá. Quanto tempo eu passei no banheiro? Olhei para a mesa e avistei um belo bolo redondo, metade verde e metade rosa, combinação interessante de cores, me lembrou uma vizinhança pacata qualquer do sul da Itália.
— Belo redondo — olhei para Matt, esperando que ele captasse minha piadinha indiscreta.
— Eu sei, tenho trabalhado bastante nele — olha para mim e acaricia os glúteos.
— Não seja nojento. Onde estão nossas loiras? — disse fingindo ter reparado apenas agora na ausência da minha mãe e da Lisa.
— Lisa foi ao mercado comprar refrigerantes e sua doce mamãe foi ao shopping, e sem querer ser um estraga-prazeres - apesar de amar essa função -, acho que ela foi comprar algo para você.

Matt continua a conversa falando de forma demasiada sobre a festa e sobre o quanto estava ansioso. Falou sobre seu possível pretendente do curso de ciências biológicas que diz ter conhecido num bar e que o havia convidado. Sobre ter comprado mais vodka que refrigerante. Sobre a presença do namorado esquisito da Lisa. Sobre todas as músicas que ele gravou em um pendrive de 4 gigas para tocar. E no meio de todos esses preparativos feitos sob os mínimos detalhes, me pergunto se essa festa é para mim ou para minha mãe, para a Lisa e para o Matt.

Recuso os pensamentos errantes e volto minha atenção para meu celular, releio por diversas vezes as duas mensagens que recebi e fico tentada a responder. O que você vai responder, sua idiota? Eu não posso ir. Eu devo ir. Quanta confusão mental, sinto que vivo na linha tênue entre a estabilidade psicológica e o completo descaso mental.
— De que horas vai começar a festa? — ignoro a discussão calorosa que iniciei comigo mesma e pergunto ao Matt que está bastante animado numa ligação.
— Acho que a Lisa passou o horário das 21h para o Nicholas. Só sei que o Hebert chega apenas às 23h — sinto um pouco de pesar na sua última frase.
— Bom, que tal se a gente escolher minha roupa? — Matthew Santí ou "simplesmente Matt", como ele mesmo diz, sempre foi muito atencioso com relação ao meu estado emocionou. Ele acompanhou minha superação com relação ao Dominik, atual dono e responsável pelas duas mensagens anônimas que recebi no celular. Sempre fui muito bem acompanhada pelo meu amigo sarcástico, que sempre me fez ver a melhor parte até das coisas ruins. Sempre há algum pouco de ouro em cada buraco.

Matt desapareceu debaixo do meu nariz e só pude ver ele entrando no meu quarto e gritando algo incompreensível sobre ele ser o único a saber me vestir de forma que chame o olhar dos homens presentes no ambiente. E lá vamos nós, mais uma vez.

Depois de um pouco mais de uma hora, escolhemos um vestido que eu nunca havia usado. Vermelho como o batom de uma dançarina animada de alguma boate. Visto ele e me vejo um pouco desconfortável, porque ainda sou a favor do all star, com a minha bela calça jeans e camiseta, mas parece que esse é o perfeito conjunto nota zero pelos conceitos estilísticos do meu amigo. Me conformo com sua escolha é decido ouvir seus conselhos.
— Já aviso que não posso usar salto, vai parecer que estou com assadura na virilha, eu ando como um camelo. — digo buscando encontrar meus olhos desesperados aos dele, que estão estreitos demais, quando riem de mim. Maldito.
— E você vai usar o quê? Porque eu vou jogar seu all star pela janela. Do que adianta estar 10 de 10 em cima e 1 de 10 em baixo? — disse sorrindo.
— 10 de 10? Quando você ficou tão hétero? — foi impossível esconder a risada.
— Se você não usar, vou contar para a sua mãe sobre o vibrador que você esconde na escrivaninha — ele foi até meu canto de estudos e abriu a gaveta.
— Espera, eu não... como isso foi parar aí? Não esconda seus consolos nas minhas coisas.
— Isso não pode ficar lá em casa, meu pai vai para lá amanhã cedo, não quero que ele veja outro pinto vagando além do meu — nos entreolhamos — além do meu coberto, claro.
— Matthew, você me assusta.
— Reajo igual quando te vejo com esse tênis horrível — ele foi até o canto do meu quarto, pegou um belo salto numa cor tão escura quanto o preto e em brilho fosco e trouxe até mim — isso até me faz querer te pegar. É ele que você vai usar.

Decidi não discutir sobre o salto, ele realmente é bonito, mas não posso evitar meu belo andar camelesco através da festa. Por que sinto que ainda há muito a esperar sobre essa noite?

17 maneiras de permanecer vivaOnde histórias criam vida. Descubra agora