22 anos

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Abro os olhos assustada e meu sonho desvanece à minha frente. Venho tendo esse tipo de sonho desde o último mês. Coloco os pés no chão e respiro fundo, um ar menos carregado que aquele que me cercava no limbo da minha própria imaginação.

Levanto com toda a preguiça que meu corpo poderia carregar e arrasto forte meus pés até o banheiro, lavo o rosto e me olho no espelho. Nossa, que desastre! Mergulho na banheira até a altura do pescoço, deixando submersa toda minha não-vontade de levantar e deixo que meus pensamentos matutinos me levem até onde eles acham que devo ir. E em poucos instantes, me pego pensando nele, em suas falsas promessas, em suas falsas declarações, em seu maldito falso sorriso e na minha falsa vontade de seguir em frente.

Ouço vozes do lado de fora do quarto, quem consegue ser tão animado às... olho para o relógio digital no balcão do toalete, às 8h47 da manhã? Levanto, me deixo ser abraçada pelo meu velho roupão lilás e caminho até a porta do meu quarto. Do lado de fora, posso enxergar a Lisa e o Matt extremamente animados olhando para a tela do meu notebook e planejando qualquer coisa que não consegue despertar suficientemente meu interesse para que eu pergunte com o entusiasmo necessário para parecer genuíno:
— O que estão fazendo? — Matt olha para mim com os olhos mais animados que eu poderia ver.
— Planejando a festa do envelhecimento da minha melhor amiga mal humorada — ele sorri olhando para Lisa, que retribui com a mesma alegria.
Em que momento da vida você afunda tanto a ponto de esquecer o próprio aniversário?
— Como vocês conseguiram entrar? Vocês precisam parar de assistir essas séries sobre crimes e invasões de propriedades, vocês me assustaram — falhei na tentativa de tentar não sorrir, eles sempre tinham o melhor de mim.
— Que tipo de pessoa você acha que nós somos? Sua mãe abriu a porta para que entrássemos e a única coisa criminosa que fizemos foi descobrir sua senha. Francamente, 'gatinhos123'? Que tipo de pessoa usa uma senha assim? — Lisa olha para Matt e os dois sorriem e sussurram algo entre si.
— Espera, mamãe está... — não pude terminar de perguntar, fui interrompida pela dona da voz mais tranquila de Connecticut.
— A mamãe está aqui.
Corri em direção a ela e pude sentir o abraço mais aconchegante e tranquilo que eu poderia ter sentido. Parecia que o dia ficaria melhor, porque ela tinha em mãos o poder de transformar qualquer coisa. Essa era a minha mãe.
— Eu não sabia que estava de volta, eu não poderia imaginar... por que não me contou nada? Por que não... — fui interrompida novamente.
— Resolvi fazer uma bela surpresa para você vindo até a sua casa e organizando tudo para os 22 aninhos do meu bebêzinho. Até parece que foi ontem que eu te vi com 1 aninho, de fralda e avisando a todos que fez cocô.
— Mãe, para com isso. E eu não quero uma festa.
— Tá, mas e nós com isso? Nós queremos uma festa para você e vamos fazer. E vamos te obrigar a estar nela, porque sua mãe vendeu você para mim e para a Lisa em troca de que ensinássemos a ela a como comprar pela Aliexpress.
— Não acredito que vocês ensinaram para uma compradora compulsiva a como comprar sem sair de casa — não pude disfarçar minha preocupação.

Lembrei de quando saí de casa para vir estudar aqui em Long Island, minha mãe mergulhada em dívidas de cartões de crédito e com a hipoteca da casa atrasada. Foram meses até que conseguíssemos economizar o suficiente para que minha mãe quitasse tudo. Faltei calouradas, festas e aniversários dos meus colegas de faculdade, o que acabou dificultando um pouco me enturmar com todas aquelas pessoas. Me aproximar da Lisa foi fácil, sempre antenada nas mais recentes notícias e tendências do mundo, sempre foi a mais bem informada da turma, acho que não preciso nem informar suas notas nas aulas de Atualidades e Debates. Matt foi um grande acaso da vida, foi aquela pessoa que entre a turma inteira, sempre me olhou com os olhos de negação. Apesar de que, talvez eu tenha olhado para ele assim primeiro, aqueles olhos verdes nunca me enganaram, eles escondiam algo obscuro, como uma garrafa de vodka na mochila ou uma boneca voodoo da professora de História da Comunicação. Me aproximar dele foi a coisa mais inesperada que poderia acontecer, quando fomos sorteados para o mesmo grupo de trabalho, junto com a Lisa e desde então, não nos desgrudamos mais. Talvez sejamos o trio mais estranho do curso de Jornalismo da Long Island University, mas nada disso importa e, o Matt nem escondia algo tão estranho assim em sua mochila, só uma cueca velha do seu ex, e tá, talvez isso pareça tão estranho quanto a boneca de voodoo, mas não para mim.

— Mãe, vou te colocar como dependente no meu cartão de crédito e não se fala mais nisso. Terá limite controlado e todas as compras passarão pela minha aprovação, não quero ter que te visitar numa prisão por tentar assaltar um banco para quitar as dívidas.
— Até parece que eu assaltaria um banco, quando poderia te vender para alguma boate da Turquia. — todos começaram a rir.
— Mãe, não é engraçado, eu estou falando sério.
— Eu sei, querida. Eu prometo que vou me comportar — eu não conseguia com aqueles olhos mansos, era impossível não me render.
— Vocês já tomaram café? — perguntei na esperança de conseguir tirar a atenção do Matt, da Lisa e da mamãe do computador.
— Não há tempo para café, precisamos organizar sua festa, todo mundo vai chegar às 22h e tudo o que conseguimos organizar até agora foi o cabelo do Matt — ele empurrou ela e nao pude evitar a risada.
— Ela me obrigou a ir até aquela cabeleireira louca da esquina e cortar meu lindo cabelo de rapunzel. Agora pareço o Justin Bieber, feliz?
— Rapunzel? Seu cabelo só estava no ombro. E estava ridículo, você não é a Kylie Jenner, para de passar vergonha  — zombou Lisa.
— Eu sou a Kardashian perdida e se você tem alguma dúvida sobre isso, não posso fazer nada. Não deixar você nadar na minha piscina de Chandon quando eu for descoberta — ironizou Matt com tanta certeza no que dizia, que algumas vezes eu poderia jurar que ele estava falando sério.
— Gente, para. Quem vocês chamaram para cá? Era para ser algo só com a gente. Não quero abrir minha casa para muitas pessoas.

Lisa levantou, veio até a minha direção e me disse para relaxar, porque ela e o Nicholas cuidaram de tudo. Que ótimo, ela passou o trabalho da lista de convidados para seu namorado maníaco. Parece que vai ser um longo dia.

17 maneiras de permanecer vivaOnde histórias criam vida. Descubra agora