O vento através dos braços

124 74 12
                                    

Só fiz esse caminho três vezes em toda a minha vida, e por mais que tenham sido poucas vezes, foi um quantitativo suficiente para que ele se tornasse especial.

Lembro da primeira vez em que fui ao Parque Brooklyn Bridge ou simplesmente Parque da Ponte, desde a primeira vez em que meu pé tocou naquela grama espessa, senti que era um lugar especial, mas não sabia ao certo o porquê. A calmaria e a conturbação formavam uma dupla e dançavam sob o rio palco de tantos suicídio.

Ao me aproximar, vejo dois carros estacionados no lado oeste, parece que mais alguém está preocupado em escapar de aniversários e curtir a noite debaixo das estrelas tímidas ofuscadas por toda a luz da cidade.

Estaciono o carro numa vaga próxima ao ponto de encontro em questão e caminho até o local combinado.
Eu nunca tinha vindo aqui de noite e parece que consigo ouvir sussurros vindos do fundo do rio, vozes, sons de uma água com tanta vida, mas ao mesmo tempo tão sem.

"Me encontre no nosso lugar favorito no Parque Brooklyn Bridge, às 20h, eu realmente preciso falar com você". Nosso lugar favorito. O antes "nosso lugar favorito" é hoje uma árvore condenada no centro do gramado, próximo à ponte, num local esquecido pelos transeuntes que praticam cooper, talvez mais amado por pessoas que vivem mais à dois que à um.

Uma vez ouvi que, quando casais românticos e apaixonados escrevem suas iniciais em árvores, jurando e querendo gravar seu amor eterno na madeira suculenta de uma espécie ainda viva, na verdade, estão tirando a eternidade daquele ser. A madeira cortada e exposta abriga bactérias e fungos que, por ventura, se aproveitam da ferida aberta e tomam como moradia aquela parte que falta. Lá, depositam seus ovos, abrem ninhos e colônias e seus sucessores se alimentam do local. A proliferação e multiplicação desses invasores se expande pelo excesso de alimento, pela boa vida que foi oferecida de bandeja por um amor jurado numa madeira ainda viva. Levam cerca de 2 anos para que uma árvore de um século adoeça por conta de parasitas. Hoje nosso lugar favorito se encontra doente, assim como nós. Ao menos, a árvore tem alguém que não amava para culpar, e quando você precisa culpar aquele que te jurou amor eterno por ter te esquecido no meio da caminhada?

Pensar que é por nossa culpa que a árvore está doente me adoece um pouco mais, prefiro fingir que cupins imigrantes do lado oposto do monte de terra que beija o fim da ponte, tomou nosso parque.

Encostada na nossa árvore olhando o horizonte, ouço passos atrás de mim e viro com menos empolgação do que desejava.

Não consigo enxergar ninguém e lembrar que esses passos podem pertencer a algum quati faminto me assusta, porque ser atacada por animais pequenos não-carnívoros e ferozes é a minha especialidade. Esquilos, patos, quatis... por favor, me ignorem.

— Eu sempre tive o desejo de causar dores em outros e ver outros causando dores em mim. Eu sempre gostei de tudo de tudo que machucava — ouvi a voz ecoar por trás da silhueta de uma árvore e semicerrei os olhos para enxergar com mais clareza.
Eu não conseguia ver direito sobre a luz da lua, mas vi que se tratava de uma pessoa com porte físico forte, altura suficiente para abrir o armário alto da minha cozinha. Eu posso jurar que conheço essa voz de algum lugar.

— Quem é você? — tento parecer o menos assustada possível, dou três passos para trás e o partir de uma folha seca estala debaixo dos meus pés.
— Todos temos poder para matar em nossas mãos, mas a maioria das pessoas tem medo de usá-lo. Os que não têm medo controlam a vida — disse debaixo de um tom de voz frio — eu realmente não espero que entenda o que estou prestes a fazer, espero que saiba que tudo isso tem um propósito maior.
— Do que você está falando? — agora estou realmente assustada. Em que merda você se meteu? — eu estou acompanhada, meu... meu namorado está chegando aqui, melhor você ir embora. — somo mais dois passos em recuo em direção ao rio.
— Vai ser tudo leve, as coisas sempre precisaram ser leves, eu nunca soube levar com leveza, mas você... você tem a habilidade de transformar tudo em algo suportável.
— Quem é você?
— Eu sou alguém que você deixou no passado e por algum tempo, achei que havia te deixado também, mas lá estava você, seguindo em frente, vivendo a vida, se permitindo a existir... — posso ouvir seu engolir a seco e gelo — se for para existir e te ver dar as costas para mim, prefiro existir para saber que você não existe mais.

Ouço seus passos se aproximando de mim e vejo nas sombras, algo como um revólver, não penso muito antes de correr com toda a força que existe em mim. Mas que porcaria está acontecendo? Olho ao redor e enxergo o lado oeste da ponte, do outro lado do parque e corro numa tentativa de fuga desesperada. Tudo seria tão mais simples sem esse salto. Até na hora da morte você consegue ser tão burra. Que tipo de pessoa vem a um parque de salto alto? Sinto um dos saltos ceder debaixo dos meus pés, encosto no caule de uma árvore qualquer e ouço o barulho do primeiro disparo, que atinge o tronco da árvore. Descarto um dos sapatos e continuo a correr.

— Me deixe em paz. O que você quer? Eu tenho um carro, você pode levar. — tento parecer mais acalma ao tirar com delicadeza e sem movimentos bruscos, o sapato que ainda sobrevivia no meu pé.
— O que eu quero não precisa de chave para funcionar, nada jamais faria isso funcionar. O que eu quero não tem conserto, mas pode ter um fim. Eu preciso que você vá, mas preciso que antes me perdoe — ele fala por trás de uma árvore, enquanto ergue uma das mãos e leva ao rosto. Você está tentando me matar e está chorando? Eu acho que eu deveria chorar.

Aproveito sua melancolia e continuo a correr, chego próximo a última árvore que resta antes de conseguir me esconder debaixo da ponte e procuro em mim o celular. Você é uma burra. Como pôde deixar o celular? Como pôde?

Ao continuar minha maratona em busca de abrigo, sinto algo profundo queimar nas minhas costas, e outra vez, e mais uma terceira vez. Automaticamente, algo como uma lágrima escapa dos meus olhos, nada disso pode ser real. Encosto na lateral da ponte e tento respirar fundo, sinto que minha respiração entrecortar, e me abaixo para avaliar meu corpo, o que há de errado em mim? Nunca dê as costas para alguém que esteja em vantagem atrás de você, mas talvez seja tarde para saber disso.

Por algum motivo, perco a força de uma das pernas e pela quarta vez, ouço um disparo que toca meu ombro. Eu não saberia de forma alguma descrever a dor que estava sentindo ali e por tudo, queria que ela passasse. Eu queria que tudo aquilo finalizasse ali. E enquanto pensava em finalizações, lembrei da minha mãe servindo um bolo quentinho de laranja na manhã de um domingo, do meu tempo de criança na escola, da risada alta da Lisa, das piadas do Matt, do Dom... tudo parecia tão perto e ao mesmo tempo tão distante, tão, tão distante.

A brisa do rio sugava para ele todas as lembranças que habitavam minha mente e elas dançaram em sincronia debaixo da luz mansa da lua e acima das águas, tudo parecia ficar mais distante e algo como um analgésico natural tomou meu corpo.

"— Você só precisa abrir bem os braços e sentir o vento passar por eles. Você é como meu passarinho". Minha mãe sempre dizia isso ao me jogar para cima no ar e me pegar de volta, impedindo que eu caísse e foi exatamente que eu fiz após sentir a leveza do vento passar sobre mim. Deixei que ele passasse pelos meus braços que cobriam aquela grama rasa, pelas minhas pernas, deixei tudo aquilo me deixar leve, porque o chão já estava me tocando, mas não doía, não doía mais. Jamais doeria novamente.

Fechei os olhos pela primeira vez, ao abrir, vi uma silhueta borrada e um pouco torta se aproximar.

Fechei os olhos pela segunda vez, ao abrir, vi uma silhueta borrada parada ao meu lado, avaliando a palidez que a noite refletia em mim e apontando algo em direção à minha cabeça.

Fechei os olhos pela terceira vez e não abri mais.

17 maneiras de permanecer vivaOnde histórias criam vida. Descubra agora